terça-feira, 30 de julho de 2013

Fernando Pessoa, heterônimos e "O Guardador de Rebanhos".

FERNANDO PESSOA (1888-1935) é um autor português do Modernismo, portanto, do início do século XX. Sua poética está, pois, vinculada aos "ismos" vanguardistas. Sua obra, no entanto, diferencia-se de todas as outras, pois forja os HETERÔNIMOS. 

Primeiramente, façamos um traçado da vida do autor: perdeu o pai e o irmão muito cedo, a mãe casou-se novamente e mudaram-se para a África quando Fernando tinha apenas 2 anos. Formado distante de seu país, iniciado e desenvolvido em outra língua, o inglês, Pessoa aprende a natureza de sentir-se à margem do mundo, sentimento que lhe infere a alma corrosivamente a ponto de não encontrar sintonia na sociedade. Egressa para Inglaterra a fim de inserir-se na universidade, mas não o aceitam e, de volta a Portugal, tentou cursar Letras, mas desistiu. Engajou em duas revistas A Águia, 1910, onde se revelou um ensaísta polêmico e Orpheu, 1915, criando o Orphismo, um movimento que desejava criar uma arte cosmopolita, fortemente intelectualizada e que pudesse acumular dentro de si todas as partes do mundo para tornar-se tipicamente moderna. As duas produções não tiveram fôlego, pois, foi, individualmente, que o poeta se projetou.

Em Pessoa, ele mesmo, sempre se sugestionou um grande descontentamento intimamente ligado à sua percepção de mundo — desencantada. Este tom melancólico o autor fez questão de guardar para si próprio na figura literária que atendia pelo nome “Fernando Pessoa”, talvez por tratar de temas que confrontavam o mundo real.

Fernando Pessoa foi um sujeito extremamente descontextualizado do mundo. Sentia-se assim e vivia assim. Logo, criar outros de si próprio era uma forma de fugir do mundo para encontrar-se, um processo doloroso de autoconhecimento que desafiava os limites da esquizofrenia. É nesse processo criativo que se revela o eu-empírico, o sujeito ideológico, do cotidiano, que vive suas experiências mais mundanas, o oeta em si, o que cria e dá vida ao eu-lírico, o eu do poema, o outro eu de si próprio. Por isso dividimos Fernando Pessoa em muitos: ele é ele mesmo, o ORTÔNIMO (eu-empírico), é suas personalidades literárias e, por fim, seus HETERÔNIMOS (eu-lírico) – Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Ser um heterônimo significa ser outra pessoa, ou seja, são construções poéticas que existem como pessoas porque possuem biografia, profissão, nome próprio e, o mais importante, estilo próprio, ou seja, cada um tem uma percepção do viver, uma personalidade e, assim, uma estética, um fazer literário só seu, uma digital artística. Então, vale lembrar que heterônimo não é o mesmo que pseudônimo, pois, este último, possui apenas nome próprio, sem estilo e biografia próprios.

Pessoa se entende como um "poeta dramático" e considera seus heterônimos como equivalentes a personagens teatrais. "O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Vôo outro - eis tudo".

A heteronímia é um ato de despersonalização, de tornar-se um outro, construindo, assim, plenamente, a alteridade (processo cultural que nos identifica quanto sujeitos no mundo). Como disse Pessoa, Cada grupo de estados de alma mais aproximados insensivelmente se tornará uma personagem, com estilo próprio, com sentimentos porventura diferentes, até opostos aos típicos do poeta na sua pessoa viva.

Nos links abaixo, você encontrará slides com um breve resumo da obra de Fernando Pessoa, feitos pelo professor Vinicius Rodrigues e o texto integral de "O GUARDADOR DE REBANHOS", DE ALBERTO CAEIRO, considerado o mestre entre os heterônimos pessoanos:

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Aula sobre intertextualidade

Acesse o link para conferir o material elaborado pelo professor Vinicius Rodrigues sobre o conceito de intertextualidade - ao final, há também exercícios:

http://www.4shared.com/office/aOEW1aWx/Intertextualidade.htm

Pré-modernismo

Acesse o link abaixo para fazer o download dos slides sobre o Pré-modernismo - com destaque para alguns dos autores regionalistas do período:

http://www.4shared.com/office/cQMW5gW4/Pr-Modernismo.html

Aproveite para ver uma antiga postagem aqui do DEVANEIO LITERÁRIO feita pela Caroline Becker sobre Jeca Tatu, o icônico personagem de Monteiro Lobato que se tornou figura marcante do imaginário nacional e que surgiu, igualmente, no período pré-modernista:

http://www.devaneioliterario.blogspot.com.br/2008/09/monteio-lobato-foi-uma-personalidade.html

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Aula sobre Vanguardas Europeias

Aos alunos dos professores Vinicius Rodrigues e Caroline Becker, segue um material que sintetiza as ideias das aulas sobre Vanguardas Modernistas na Europa - elaborado a partir de material produzido pelo artista plástico Lucas Strey, nosso parceiro. É só clicar no link para fazer o download do arquivo:

http://www.4shared.com/office/kknlo8Rp/AULA_Vanguardas_europeias.html

*Aproveite para conhecer os projetos, obras e propostas do Atelier Strey e do Realize artecoworking, do nosso amigo Lucas Strey.

Às margens da arte, muito perto das massas.

De Andy Warhol a Jean-Michel Basquiat, parece haver um caminho natural da pop art dos anos 1960 à arte urbana que se manifesta contemporaneamente. Junto disso, os próprios processos artísticos parecem igualar-se na forma como conclamam por sua liberdade de estilo: se latas de sopa e imagens de ícones do cinema serigrafados com múltiplas paletas de cores renovaram a arte moderna, colocando em voga uma possível aproximação com a cultura de massa, o grafite que se expressa nos muros das cidades de hoje manifesta, sem qualquer pudor, influências que vão dos desenhos animados às histórias em quadrinhos de humor e os mangás.
 
Roy Lichtenstein, um dos pais da pop art, já anunciava a atenção à comunicabilidade expressiva da arte sequencial (outro nome dado às HQs) e seu conteúdo gráfico, expresso nas explosões de cores e na hibridização de sua linguagem. Através de uma visão crítica e irônica para com a arte sequencial, Lichtenstein antecipou o diálogo entre a plasticidade das imagens dos quadrinhos com as artes plásticas. Hoje, no entanto, tornou-se até comum ir a uma livraria com acervo de reconhecida qualidade e enxergar belos encadernados luxuosos, com preços tão exorbitantes quanto belas reproduções de quadros de pintores famosos; nesses espaços, os quadrinhos flertam com “alta cultura”, com a “boa literatura” e ganham novos públicos, na mesma medida em que recebem certa “permissão” para circular, deixando de lado velhos tabus e preconceitos. Da mesma forma, muitos grafiteiros deixaram a marginalidade e os guetos, saíram dos subúrbios das metrópoles para invadir os museus e as grandes galerias do mundo todo.
 
Serigrafias de Andy Warhol (1967)
 
 
"M-Maybe", Roy Lichtenstein (esq.) e obra de Jean-Michel Basquiat (dir.)
 
 
Como nos dizeres de Nestor Canclini, grafite e quadrinhos são gêneros artísticos “constitucionalmente híbridos”, tanto estruturalmente quanto à forma de recepção e circulação. E a hibridização de métodos e processos artísticos é uma das máximas da arte contemporânea. Nessa hibridização, fundem-se posturas e conceitos, diluem-se noções antes estabelecidas que agora tornam-se fluidas nos diálogos pós-modernos – por isso, a permanente dificuldade de estabelecer as tendências estéticas contemporâneas para além de discursos genéricos acerca da fragmentação, da instabilidade, da liquidez dos tempos atuais. Nesses dois exemplos – grafite e HQs –, o movimento contemporâneo que os retira da marginalidade (em comparação com outras manifestações já estabelecidas a partir de noções de valor), ao mesmo tempo, estabelece um novo cânone, logo, novos valores para determinadas obras e autores dessas linguagens; a permissividade se estabelece a partir de condições, portanto, arbitrárias, com isso, diluem-se outras relações: por exemplo, se os quadrinhos estão atrelados à comunicação massiva (pois surgem na cultura de massa), hoje tal noção é colocada em xeque, pois tudo pode ser massivo, na mesma medida em que pequenos públicos podem se formar em torno de artistas menores – garantindo a sobrevivência profissional destes, sem a necessidade da mecanização industrial; nas HQs, a relação de valor estético que se estabelece entre determinados autores e graphic novels (rótulo editorial “da moda” que auxilia nesse processo de valoração), segmenta os públicos a ponto de não os tornar, todos, objetos de grande circulação, logo, a noção de cultura de massa, neste caso, desfaz-se.
 
Se a ideia de cultura de massa vem, também, historicamente, para diferenciar as acepções acerca do que é “popular” (pois nem todo “popular” é o que é consumível comercialmente, bem como nem tudo que é popular pertence somente ao folclore ou à tradição), o grafite, no contexto do hip hop como movimento cultural das zonas urbanas, bagunça isso ainda mais. Hoje ainda encarados com preconceito por boa parte da população, os grafiteiros ocuparam a cidade e também o mercado da arte contemporânea, sendo reconhecidos por sua inventividade e gestos de profunda liberdade artística. Esse grafismo urbano tem, também, algumas raízes históricas que ajudam a entendê-lo no momento em que Jean-Michel Basquiat torna-se um artista realmente conhecido a partir dos anos 1980: há um gesto quase simbólico no momento em que Andy Warhol conhece Basquiat e passa a ter sua amizade; é como se as artes houvessem trilhado um caminho natural até chegar nesse ponto – das vanguardas à arte pop, da pop art à street art (de Warhol a Basquiat).

Grafite de Basquiat


É preciso notar, contudo, que o grafite – para além de Basquiat – tem, ainda, um forte vínculo com a cultura hip hop, é um de seus “elementos. O grafite e o hip hop “bagunçam” a dicotomia do “popular” por não serem vinculados diretamente às noções pré-estabelecidas no campo da arte com relação à massa ou à tradição; são, no entanto, vinculados a elas de alguma forma: o grafite, por exemplo, é, a princípio, uma intervenção urbana – em meio à multidão da metrópole, encontra a massa, portanto; também, por outro lado, é igualmente vinculado a uma espécie de tradição pictórica que vem desde as pinturas das cavernas, passando pelas composições nas paredes de Igrejas, nos vitrais, nas tapeçarias, chegando aos muralistas do século XX, como o mexicano Diego Rivera; ao mesmo tempo, seu caráter intervencionista traz outro apelo frequente da arte moderna – um dos mais prestigiados artistas contemporâneos, por exemplo, Banksy, usa e abusa desse conceito, usando tanto o pincel quanto o spray nas ruas de Nova Iorque. O hip hop é a cultura que vem “da rua”, “do gueto”, do subúrbio, enfim, para se manifestar nos grandes centros metropolitanos e ser absorvida por todos; o que não impede que seus elementos sofram movimentos constantes de “pasteurização” até chegarem à massa – ou de “intelectualização” para que  sejam aceitos pela crítica e nas altas esferas eruditas – consequências de sua absorção ou “exigências” para tanto.
 
Obra de Banksy
 
Grafite d'Osgemeos.
 
Grafite d'Osgemeos.
 
 
Assim, mais uma vez, como qualquer fenômeno artístico, as artes se transformam, na medida em que seus públicos também se diversificam. Manifestações periféricas, tidas como marginais, ou ainda outras, tratadas durante décadas como “cultura menor” ou mero entretenimento devido a sua relação com a cultura de massa, repentinamente, passam a ser “aceitas”, “permitidas”. As consequências disso são importantes para a evolução dos fenômenos artísticos, para a formação de um público que possa, enfim, sustentar, literalmente, os autores para que estes continuem investindo na criação. O preço a se pagar por isso é, de fato – sem querer ser redundante, mas já o sendo –, o preço: a noção de valor que vem acompanhada disso, seja ela estética ou de mercado.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Arte, lixo e grana: um diálogo subversivo.


Você já viu o filme Lixo Extraordinário? O imperdível documentário dirigido a seis mãos por Lucy Walker, João Jardim e Karen Harley une vários discursos diferentes acerca da arte. Em comum, tais discursos guardam como característica primordial a capacidade de se articularem historicamente com as muitas transformações que a arte e a recepção artística tiveram ao longo de centenas de anos e, ainda, o caráter inconstante de suas perguntas que, ao invés de nos levarem a respostas concisas, só nos encaminham para novos questionamentos.

         Isto porque arte, conceitualmente falando, é expressão, é linguagem, e – como sabemos –, não há instrumento identitário mais poderoso do que a língua e a capacidade de articulação que o indivíduo tem dentro dela. Metaforicamente, o artista expressa-se sempre com uma espécie de “língua” própria, que denominamos estilo. Para o desenhista e para o pintor, o traço representa a sua “identidade visual”; para o autor literário, sua capacidade de articular temas e linguagem de uma forma que o identifique textualmente representa seu estilo como escritor – como a ironia machadiana ou a estrutura do texto de José Saramago, por exemplo. Trata-se de uma relação de “empoderamento”: ser fluente e ter acesso a essa “língua” é uma espécie de aquisição de “capital simbólico” (como diria o sociólogo Pierre Bourdieu), algo perceptível também em outras áreas da vida, como na relação de um indivíduo com o seu trabalho (na medida em que se reconhece como profissional de uma determinada área) ou, ainda, na forma como mantém seu círculo de relações. Na verdade, se bem observarmos, ao tematizar o trabalho dos catadores de lixo do aterro sanitário do bairro Jardim Gramacho, na cidade de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, Lixo Extraordinário contempla, igualmente, essas duas relações de empoderamento: o reconhecimento do próprio ser frente ao seu ofício (e de que maneira tal ocupação relaciona-se com os interesses de sua comunidade) e o poder de transformação que a arte tem para quem acessa ela, principalmente quando a mesma parece tão distante para certas pessoas.

Basicamente, Lixo Extraordinário trata dessas discussões ao lidar com dois temas, em princípio, opostos, que são, neste caso, complementares: lixo e arte, subvertendo o valor dado a tais conceitos na medida em que os inverte constantemente de posição até o ponto em que se confundem justamente por essa medida, o valor. Neste quesito, o critério de valor estético poderia ser uma temática a ser debatida mais profundamente no filme não fosse outra noção de valoração que se nele se sobrepõe: o valor financeiro. O documentário chega a esse ponto da discussão ao mostrar a jornada do mundialmente famoso artista plástico Vik Muniz em meio ao Jardim Gramacho, recrutando catadores para servirem de modelos e assistentes de um projeto que traz o lixo como matéria prima de um processo de releitura de obras clássicas da pintura; seu produto final, as fotografias das reproduções dos quadros originais (feitas em larga escala com materiais recicláveis extraídos do Lixão de Duque de Caxias), ao serem leiloados com toda a pompa dos grandes leilões de obras artísticas, tornam esses simples catadores reconhecedores de sua origem na medida em que também se reconhecem como artistas em potencial. Neste momento, essas duas formas de acúmulo de capital se encontram: o capital financeiro, tão importante para a associação de catadores do Jardim Gramacho, não se torna maior ou menor do que aquele denominado “simbólico”, mas sim equivalente – neste caso, essencial para indivíduos que precisam enriquecer, igualmente, sua autoestima.

No plano da arte propriamente dita, Vik Muniz e seu projeto parecem ser, neste processo registrado no documentário, catalisadores de inúmeras reflexões sobre o objeto artístico que surgem na tela. Em primeiro plano, a noção de valor estético, associada à confluência entre lixo e arte, parece ser a mais latente: o valor que se dá ao lixo e o valor que uma obra artística pode adquirir. Outra relação é com o processo de autoria: o autor do conceito estético é tão autor quanto aqueles que manipulam os materiais ou participam da obra de alguma forma? Em outro plano, no entanto, está a relação com a originalidade no específico processo de releitura ao qual se propõe o artista: o lixo como material para a reprodução de obras consolidadas no “cânone” das artes visuais permite sua aceitação e circulação irrestrita no meio artístico, nos grandes museus e galerias. Naturalmente que associado a isso está o nome de Vik, que tem seu talento reconhecido no mundo todo, todavia, seu trabalho (ou seu conceito) leva a uma questão fundamental no campo das arte contemporânea, qual seja a de que, muitas vezes, o que mais importa, atualmente, é a arte como processo, a submissão da forma frente à riqueza da função, ou melhor, da intenção. Logo, um retrato nunca é um mero retrato se, para pintar, o material utilizado é tão incomum quanto geleia ou pasta de amendoim (para citar alguns experimentos do próprio Vik). No caso de Lixo Extraordinário, o processo de composição das reproduções dos quadros interage com seus participantes, sábios conhecedores da matéria prima a ser utilizada (o lixo reciclável), que acabam sendo protagonistas de algo que, de fato, ajudaram a criar. Assim como na série Sugar Children, onde o artista foi para uma plantação de açúcar em St. Kitts para fotografar filhos de operários que lá trabalhavam, fazendo após as reproduções das fotos com açucar sobre papel preto, o conceito estético coloca-se em primeiro plano na medida em que há uma imbricação de temas e processos; contudo, o produto final é também resultado de um processo criativo, mesmo no caso das obras vistas em Lixo Extraordinário.
 

Etimologicamente, a palavra arte, em uma das muitas acepções que teve ao longo da história, tem a ver com técnica; neste caso, o termo acabava designando o conjunto de regras capaz de dirigir qualquer atividade humana. Tanto como na relação com a beleza, percebe-se que há um pressuposto de interação objetiva com o espectador: técnica apurada resulta em beleza, tomando como parâmetro o que é “agradável aos olhos e ao espírito”. Contrariando essas duas ideias canônicas sobre o objeto artístico, as vanguardas europeias do final do século XIX (Impressionismo, Simbolismo) e início do século XX (Futurismo, Surrealismo e, principalmente, Dadaísmo) trouxeram uma grande contribuição para o campo da estética, qual seja a de que a arte também representa a desacomodação e o estranhamento; somada a isso está a reflexão sobre a arte – seus significados simbólicos e sua conceituação – a partir do próprio objeto artístico (processo este que podemos associar à ideia de metalinguagem). Com isso, até mesmo do ponto de vista material, a arte se modificou e, com o tempo, apenas ampliou o gesto provocativo de Duchamp ao colocar um urinol numa exposição e lançar o read made (o deslocamento conceitual de um objeto de seu contexto original, transformado em arte a partir de uma intencionalidade artística). Vik Muniz, por sua vez, está em uma outra “ponta” do processo, irrompendo a relação de submissão da arte contemporânea ao ideal dadaísta de chocar e provocar sempre, investindo em  processos artísticos originais, atrelados, também, à reprodução figurativa e uma percepção mais clara da mensagem. Vik, desta maneira, compõe a partir de processos híbridos - outra constante no mundo contemporâneo das artes.
Contudo, o que parece mais latente no trabalho de Muniz observado em Lixo Extraordinário se dá na relação do artista com o mercado, um tabu constante para os artistas em geral, que parecem, por um lado, ainda depender constantemente de práticas de mecenato para sobreviver e, por outro lado, negar a importância de se inserir num mercado consumidor (um comportamento que tem a ver, também, com o início das vanguardas e sua relação conflituosa ao longo do século XX com o fenômeno da cultura de massa). A postura subversiva de Muniz, neste sentido, está em dialogar naturalmente com essa questão, reconhecendo, também, que não bastaria apenas “invadir” e intervir no espaço daqueles indivíduos mimetizados em meio a toneladas de lixo e fedor de chorume; por reconhecimento e consideração, eles deveriam ser agentes da transformação do próprio objeto com o qual lidam, traduzido em arte; deveriam, da mesma maneira, perceber o quanto a arte transforma o ser na medida em que ele é participante ativo da mesma, quando ele é capaz de, primeiramente, ser “falante” dessa “língua” tão especial e, enfim, ser reconhecido por isso inclusive financeiramente, na medida em que circula num meio que parecia ser tão distante.
Fica a dica! Até porque, o lixo “está na moda” – e é bem melhor ver esta pérola de documentário do que a telenovela da Globo.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

O Poe nosso de cada dia

Resgatar antigas preferências é um hábito que gosto de preservar. Uma nostalgia quase romântica invade meu ser quando revejo, praticamente em todos os anos, por exemplo, a trilogia De Volta para o Futuro, que só fica mais genial com o passar do tempo; Conta comigo, outro "clássico" dos anos 80, ainda é um filme que também me emociona; outro dia desses também revi O Clube dos Cinco, do John Hughes e, exceto por uma sequência musical, trata-se de uma obra que, igualmente, ainda não é datada, pois fala de questões universais - uma prova disso é que teve uma montagem para o teatro recentemente, adaptando questões tão somente pontuais. Apesar das citações, apenas nasci nos anos 1980. Acabei, contudo, criando-me com referências como essas, tanto musicais quanto fílmicas, recheadas de penteados esquisitos e moda new wave - acho que tem a ver com o meu irmão mais velho e com a programação da "Sessão da Tarde" até a primeira metade dos anos 90.
Em casos diferentes dessa carinhosa nostalgia que sentimos, surgem outras formas de resgate, que demonstram a importância de preservar as sensações e lembranças do passado (e no passado) mesmo; nessas situações, a questão é que é melhor evitar resgatar para não estragar as boas memórias. Uma leitura que te emocionou na infância ou na adolescência, por exemplo, pode se mostrar frustrante anos depois, seja em questões técnicas, seja em seu conteúdo subjetivo - que pode acabar perdendo considerável força. Isso nunca aconteceu comigo quando o assunto foi Edgar Allan Poe. E tenho certeza que todos que se tornaram seus leitores devem ter a mesma sensação.
Acontece que recentemente houve uma convergência de necessidades: precisei eu ler Poe para uma cadeira do mestrado, justamente no mesmo momento em que trabalhava "Os Crimes da Rua Morgue" com meus alunos e produzia um artigo sobre a HQ A Liga Extraordinária, de Alan Moore e Kevin O'Neill, que cita o mesmo conto em sua narrativa povoada por outras intertextualidades; uma das leituras pra a cadeira consistia em "A Carta Roubada", outra história protagonizada pelo detetive Auguste Dupin de "Os Crimes da Rua Morgue", uma feliz coincidência que auxiliou no debate com a gurizada e na produção do artigo. A última vez que tinha lido Poe com atenção fora em 2009, na ocasião também devido à seleção de leitura para uma turma do primeiro ano do Ensino Médio. Fato é que 4 situações distintas se relacionam às minhas leituras mais ávidas de Poe: a primeira, aos 12 anos, quando ganhei do meu pai uma coletânea feita pela Ática, da coleção "Eu leio"; a segunda já na faculdade de Letras, no segundo semestre; na terceira ocasião, já era professor; a quarta é esta, em 2012, com 25 anos, onde convergem todas essas experiências: acadêmicas, profissionais e da "leitura por ela mesma", visto que ler o autor é sempre um convite que não vem limitado a somente um ou outro texto, pois Poe parece ser permanente (e necessário!).
Reler "A Carta Roubada" me fez querer, logo, retomar a leitura de "...Rua Morgue" antes mesmo do trabalho com os alunos, o que me fez reler outros contos, entre eles "O Poço e o Pêndulo", um dos meus preferidos. Engraçado que, na medida em que nossa maturidade como leitor cresce, crescem, igualmente, nossas expectativas e, sem dúvida, nos tornamos leitores mais chatos. Abri este conto na primeira página e pensei: "e se eu não achar ele tão bom?", afinal, há coisas no campo do fantástico, do terror e do suspense que podem soar tão ridículas, tão sem graça anos depois... E não é que ele ainda é ótimo! Que sensação agradável a de dizer que um escritor que fez muito sentido há tantos anos pode, ainda, suscitar a surpresa, bem como a constatação de sua genialidade e a felicidade por ter vivido uma experiência artística de imenso prazer.
E aí vêm aquelas outras constatações: apesar da frustração do (atenção: spoiler!) orangotango assassino de "Os Crimes da Rua Morgue", como é interessante notar que alunos de 14/15 anos têm capacidade de articular comentários tão perspicazes sobre um autor tão notavelmente genial e academicamente prestigiado. E as referências que eles próprios trazem tornam o autor ainda maior, mostram que ele foi capaz de introduzir elementos ainda recorrentes nas narrativas de terror, suspense e nas histórias policiais (foi só citar "O Poço e o Pêndulo" para alguém falar de Jogos Mortais, por exemplo - tudo a ver!). Isso mostra o quanto subestimamos, muitas vezes, essa gurizada; e mostra também a qualidade inquestionável de Poe! Edgar Allan Poe é eterno! É perene! E se ainda faz sentido, não só para mim, mas para outros que o experimentam agora pela primera vez, é porque suas criações têm algo além do normal, o que certamente o autor não deixaria passar: apontaria como uma "maldição", uma força sobrenatural - a humanidade está fadada a adorá-lo para o resto de sua existência, ou enquanto ainda existirem leitores; os que o leem, para sempre o lerão e para sempre se sentirão satisfeitos com suas ideias macabras, sinistras, teríveis, doentias, conflitando-se moralmente com tal prazer (o prazer sádico de "O Poço e o Pêndulo", por exemplo); ao lê-lo, você será, eternamente, seu seguidor e jamais conseguirá considerá-lo limitado, ultrapassado, medíocre, pois ler Poe significa nunca ficar indiferente.
Todo esse resgate de Edgar Allan Poe fez com que eu lembrasse de uma antiga adaptação de "O Coração Delator", um belíssimo curta metragem de 1953. Acredito que seja uma das melhores das muitas versões cinematográficas de suas obras - porém, uma das menos conhecidas. Trata-se de uma animação muito bem produzida, adaptada de um conto que traz situações exemplares das narrativas do autor - que, claro, eu não vou contar quais são (estamos falando de uma história de suspense, ora essa!), veja você mesmo, vale muito a pena (atenção: há um erro grotesco na tradução da legenda logo no início, pois afirma-se que se trata de uma "história real"; na verdade, o que se quer dizer é que a animação é baseada numa história originalmente escrita por Poe):


*Neste ano, estreará nos cinemas o filme O Corvo, com John Cusack, que
traz Edgar Allan Poe às telas com uma proposta que lembra Os Irmãos
Grimm, de Terry Gilliam: o autor é agora personagem, dentro de uma história
que lembra muito suas próprias criações, principalmente as do campo policial;
Poe é o contista que conhecemos, auxiliando a polícia na investigação dos crimes
de um assassino que mata utilizando referências de suas histórias. O filme
apresenta o escritor a um nova geração, o que se espera que crie, também, novos
leitores. (Confira o trailer: http://www.youtube.com/watch?v=RYgthg-SR2M

terça-feira, 3 de abril de 2012

Pastoreios

Olha só que legal!
Um artigo escrito por mim, Vinicius Rodrigues, para a cadeira de Teoria e Crítica da Literatura Brasileira, do professor Luís Augusto Fischer, no Mestrado em Literatura Brasileira, acabou sendo publicado pelos Cadernos do Insituto de Letras da UFRGS, um dos periódicos acadêmicos de lá. Além da feliz publicação, Rodrigo dMart, um dos autores da obra analisada no artigo - a graphic novel Um Outro Pastoreio - tratou de repercutir o assunto no seu blog:
O artigo, intitulado ""Não conto... Reconto!' Um Outro Pastoreio e o Sincretismo Narrativo", se propõe a discutir esta obra híbrida a partir das noções de tradição, recontagem e a herança carregada das referências de Simões Lopes Neto e da cultura afro-brasileira. A proposta estética do livro de Rodrigo dMart e Indio San possibilita uma leitura ampla de sua estrutura, o que o artigo acaba analisando como algo "sincrético". O trabalho de análise, bem como a própria obra, servem muito bem àqueles que curtem quadrinhos, narrativas gráficas, fábulas, enfim: boas histórias, em suma, bem contadas e, principalmente, ousadas. Segue o link do artigo:

segunda-feira, 26 de março de 2012

"Sobrevivente", de Yuri Flores Machado

Posto aqui um texto do amigo Yuri Flores Machado, vencedor da categoria conto no 6º Concurso Habitasul de Revelação Literária da Feira do Livro de Porto Alegre, em 2005. Trata-se de um texto literário recheado de metalinguagem, na medida em que usa a biblioteca como espaço para sua ação e traz referências à própria literatura - algumas explícitas, outras não. Leia e descubra!
Justificar
***
O Sobrevivente

Exerço o cargo de diretor da biblioteca central. Neste local conheci um homem que já trabalhava entre os livros há pelo menos vinte anos. Santelmo era um bibliotecário singular, com seus óculos de aros retangulares e lentes muito grossas que intensificavam o negrume dos seus olhos e também alongavam suas pálpebras. Estas pareciam duas espessas colchas sobre as órbitas oculares. Logo acima, duas sobrancelhas assemelhavam-se a duas baratas inertes. Completava o conjunto grotesco a cabeleira oleosa em revolta desde a primeira hora da manhã.
Contudo, eu não podia reclamar de seu trabalho, à sua maneira ele resolvia os constantes problemas de uma grande biblioteca. Avesso a atalhos, os gestos de Santelmo eram excessivamente tortuosos, porém, permeados pela eficácia e sempre coroados com o êxito. Santelmo, logo eu descobri, era um amante dos livros e da humanidade que podemos extrair deles.
Certo dia, sobre o mezanino da biblioteca, eu e o proprietário de uma empresa especializada no controle de pragas, observávamos os homens trabalhando no extermínio desses pequenos e indesejáveis inquilinos das bibliotecas, os insetos. Calados, supervisionávamos os movimentos dos exterminadores. Procurei com os olhos e mais uma vez enxerguei Santelmo agindo de modo extravagante. Nervoso e olhando para os lados, ele retirou um livro de uma estante e como se seu objetivo fosse furtá-lo, enfiou-o no bolso de seu sobretudo. A sua expressão era de triunfo, como se tivesse posto a salvo a civilização. Há bastante tempo eu me acostumara com as suas esquisitices e naquele instante não estranhei mais um dos esquetes de Santelmo e, com um sinal, solicitei que subisse até o mezanino. Apresentei Santelmo ao homem da empresa e este entendeu que era sua obrigação profissional entreter a mim e a Santelmo com uma palestra. Com um tom de voz acima do tolerável, o homem iniciou o seu discurso:
- Pesticidas e venenos fazem parte do passado. Com esta nova técnica revolucionária de extermínio desses detestáveis seres de seis patas, os funcionários e usuários de bibliotecas não correm mais o risco de alergias e intoxicações. É um progresso sem precedentes no controle de pragas e infestações em ambientes fechados, e como todas as grandes invenções, o princípio é simples: com uma lona lacramos hermeticamente a estante e com uma bomba de sucção retiramos o oxigênio do seu interior, substituindo este precioso gás, imprescindível a todos os seres que respiram, por hidrogênio. Resultado: Todos os insetos mortos!
Eufórico, o homem emitiu uma sonora gargalhada. Eu sorri complacente e até deixei escapar alguns risinhos cúmplices, afinal, realmente a técnica era eficiente e limpa. Santelmo soltou um suspiro, num misto de impaciência e irritação. Durante a explanação, verifiquei que o bibliotecário apresentava sintomas iguais ao de um vulcão na iminência de entrar em atividade, o que não tardou em acontecer:
- Tecnólatras e suas técnicas revolucionárias. Criam necessidades artificiais para escravizar incautos. Foram algumas destas técnicas inovadoras que deram fim à vida de milhões de seres, inclusive seres humanos. Mas não... é o maravilhoso século XX, o século do progresso e da ciência. O senhor sabia que é este seu tecnicismo galopante que está transformando a Terra em uma imensa fornalha!?
O dono da empresa ainda sorria com a boca levemente aberta e olhou atônito em minha direção, como que implorando que eu traduzisse as palavras de meu funcionário. Pedi licença ao homem e convidei Santelmo para um café em minha sala. Com diplomacia falei:
- Santelmo, eu verifiquei a tua pasta e constatei férias vencidas. Ninguém aguenta ficar tanto tempo sem descansar. Não diga nada hoje. Segunda... Segunda-feira nós voltamos a conversar.
- Férias? Não preciso de férias. Eu tenho muito trabalho. As pessoas vêm à biblioteca para utilizar microcomputadores, ler os jornais diários ou passar os olhos sobre essas revistas cheias de fotografias. Insisto que leiam algo que transcenda as suas vidas cotidianas e elas não me dão ouvidos. Estão embotadas. Este livro é um exemplo, permanece anos sem ser retirado.
Foi então que Santelmo retirou o livro do bolso de seu sobretudo e mostrou-me, mas tal qual um ilusionista recolocou-o rapidamente em outro bolso, de modo que não identifiquei o título da obra. Ele prosseguia com suas lamentações:
- Sabe diretor, certos leitores me dizem que este livro não passa de pura fantasia. Como se isto fosse ruim! Como se a fantasia não tivesse mais lugar neste mundo. Mas eu não desisto, depois que esses exterminadores de insetos voltarem para as suas casas, ele retornará são e salvo para a prateleira.
O bibliotecário virou as costas e desceu a escada caracol que liga o mezanino ao térreo. Os funcionários terminaram o extermínio e juntamente com o espirituoso antagonista de Santelmo despediram-se e foram embora. Ao final do expediente, noite fechada, avistei Santelmo da janela de minha sala. Ele provocava os motoristas, pedalando sua bicicleta em ziguezague entre os automóveis e era alvo de furiosos xingamentos.
A biblioteca encontrava-se às escuras e a claridade disponível consistia apenas no brilho da iluminação pública que penetrava pelas vidraças e clarabóias. Havia uma espécie de penumbra fabulosa nos corredores da biblioteca central e pensei, então, na inabalável solidão que habita os livros, naqueles extemporâneos gabinetes de leitura, nos bustos dos escritores que jaziam pelos cantos da biblioteca e assim caminhei até o local onde repousava o misterioso livro. Espremido num claro-escuro da prateleira, lá estava ele, como que querendo se ocultar. Abri-o aleatoriamente em um capítulo.
Tratava-se de uma célebre novela alemã e naquele instante, confesso, não compreendi o porquê da obsessão de Santelmo com o livro. Somente quando eu já esticava o braço para recolocá-lo na estante é que um inseto, com suas rápidas perninhas, percorreu-o de ponta a ponta, cruzou sobre o título da obra - A Metamorfose - e escondeu-se entre a orelha e a desgastada capa. Afobado, segurei o livro pela lombada e energicamente sacudi as páginas com o objetivo de desalojar o sobrevivente, mas ele escapou das minhas investidas, desaparecendo para sempre.
Alguns meses após esse acontecimento, perdi meu funcionário mais competente, “aposentado por motivos de saúde”. Mesmo com as inúmeras petições enviadas à junta médica, infelizmente, não consegui reverter decisão tão injusta.
Depois da partida de Santelmo, nos dias de desinsetização na biblioteca central, Gregor Samsa passou a encontrar refúgio no bolso interno do meu casaco.
***
*Aproveitando o momento, quem aí já leu A Metamorfose? E outros escritos de Kafka? Comentem a respeito!

terça-feira, 20 de março de 2012

Beats na tela grande e o filme que o cinema esqueceu - parte II

Hoje fui surpreendido por uma notícia muito legal: há outro filme sobre a geração beatnik sendo gestado! Será protagonizado por Daniel Radcliffe, o que certamente garantirá uma ótima visibilidade (e a quase certa exibição nos cinemas brasileiros). Muito legal mesmo! Mas ainda fica a imensa vontade de ver Howl - citado na postagem anterior -, visto que os filmes tratam de momentos diferentes: este da grande divulgação do movimento via Allen Gisnberg e seu poema-chave "O Uivo" e aquele dos momentos que antecederam a explosão criativa beat. Para todos os efeitos, o importante mesmo é retomar essa galera! (Seja com o Harry Potter, seja com a mina do Crepúsculo - hehehehe...)
*Segue aí a notícia na íntegra sobre Kill Your Darlings, o filme onde Radcliffe interpreta Ginsberg:
http://omelete.uol.com.br/cinema/kill-your-darlings-veja-daniel-radcliffe-como-o-poeta-allen-ginsberg-nas-primeiras-imagens-do-filme/

segunda-feira, 19 de março de 2012

Beats na tela grande e o filme que o cinema esqueceu.

Aproveitando a postagem anterior...
Está para chegar aos cinemas - mas não sem antes circular pelos principais festivais do mundo - a aguardadíssima adaptação do romance de Jack Kerouac On the road. A grande obra da geração beatnik já vem celebrada antes mesmo de seu lançamento: com direção do grande cineasta brasileiro Walter Salles e um elenco fantástico (entre os quais Viggo Mortensen, o que eu mais quero ver, na pele do alter-ego do escritor William Burroughs).

Em função do recente hype em torno da obra, visto que a "geração-Crepúsculo" já vai atrás loucamente em função da presença de sua musa, Kristen Stewart, no filme de Walter Salles, andam aparecendo novas publicações de Kerouac por aí: a L&PM continua soltando seu acervo, enquanto a Devir lança uma biografia em quadrinhos do autor. Dessa leva recente, a L&PM já publicou há algum tempo o "manuscrito original" de On the road, livre das supressões de nomes e uso de pseudônimos que o autor acabou usando em seu livro, afinal, On the road é um testemunho de uma geração e, de certa maneira, parte da própria história da cultura e da literatura beat. O romance de Kerouac, entretanto, para todos efeitos, é literatura - e da melhor qualidade; é ficção - pelo menos a princípio; é contrução de personagem - mesmo que seja fato que os escritores beats sabiam ser, realmente, ótimos personagens na vida real, por assim dizer (Kerouak sabia e fez disso o livro de uma geração, de várias gerações).
Mas a questão é que se On the road não é uma biografia, contudo (ainda que saibamos que tenha conteúdo autobiográfico), e sua adaptação certamente ocasionará uma retomada de sua leitura, outra obra recente do cinema também joga luzes sobre a geração beatnik, só que esta, porém, está inédita no Brasil - para nosso desespero: Howl conta a história da grande polêmica em torno do lançamento do poema "O Uivo", do outro grande "pai" da cultura beat, Allen Ginsberg - e que, na verdade, é quem realmente manteve o legado dessa geração durante os anos posteriores (servindo de grande referência para Bob Dylan, por exemplo). No final das contas, fiz esta postagem só para chegar aqui: tomara que On the road proporcione, também, a boa vontade de alguma distribuidora para lançar Howl no Brasil. Este não tem Kristen Stewart, mas tem James Franco, que parece estar ótimo como o jovem Ginsberg.

quinta-feira, 15 de março de 2012

14 de Março, Dia Nacional da Poesia - e eu nem sabia...

Que relapso que eu sou! Nem sabia que ontem, dia 14 de Março, era Dia Nacional da Poesia. Bacana isso (não eu não saber, é claro). O mais bacana, entretanto, é a motivação da data.
Se foi por meio da postagem via Facebook da grande dama do Instituto de Letras da UFRGS Jane Tutikian que eu fiquei sabendo desta data solene (que não é tão solenemente celebrada como deveria ser), foi através de outra grande figura, o colega de trabalho e das Letras Yuri Flores Machado que pude conhecer a origem do negócio: deve-se ao dia do nascimento de Castro Alves, "o poeta dos escravos". Uma baita homenagem, sem dúvida, para um baita poeta, o melhor entre os românticos brasileiros, na minha opinião, que, mesmo que fosse só em função de "O Navio Negreiro", já mereceria todo o reconhecimento do mundo. Que grande texto! Que obra-prima! Alguém aí já ouviu a versão da Maria Bethânia (onde ela também canta "Um Índio", de Caetano Veloso)? Certamente que sim, por isso resolvi colocar uma outra leitura do poema, onde Bethânia, em parceria com Caetano, mais uma vez recita o poema; não tem o mesmo drama, mas o videozinho do Youtube traz várias imagens bacanas - muitas são pinturas e desenhos de época, inclusive com a presença de ilustrações de Debret, o pintor francês que andou pelo Brasil no início do século XIX e reproduziu muitas das cenas da vida cotidiana colonial:

Mas o que eu queria dizer mesmo não era isso. Ao pensar sobre esse dia, fiquei tentando descobrir a partir de que momento a poesia teve presença mais especial na minha vida, afinal, para quem lida com a literatura - no nível acadêmico, como professor, escritor ou mesmo para quem somente aprecia, mas de forma realmente significativa -, essas coisas sempre têm uma motivação especial; parece que, em geral, o gosto não se forma espontaneamente, é preciso aquele momento de transcendência, aquela epifania louca onde o livro se abre e parece revelar todos os segredos do mundo; na prosa, sem dúvida, isso aconteceu comigo quando eu li o Bukowski pela primeira vez. Hoje eu nem acho o "dirty old man" tão bom quanto achava antes (eu tinha 15 anos - qualquer coisa cheia de palavrões me agradaria) e andei repensando isso justamente em outra data simbólica: na semana passada, quando do aniversário da morte do escritor, na Sexta, em pleno bar da Cidade Baixa que o homenageia. Porém, foi a leitura de Bukowski e quase toda a sua obra em prosa que havia disponível na época que me levou a John Fante, um dos grandes marginais da literatura norte-americana e dono de um estilo muito humano, verdadeiro e sutil. A partir disso, lembro que comecei a ficar obcecado com escritores que transpirassem esse tipo de "verdade" em sua literatura e que, de alguma forma, tivessem um comportamento tão politicamente incorreto quando Charles Bukowski...
...E eis que cheguei a Jack Kerouak; e esse que é um dos pais da literatura/cultura beatnik me levou a Allen Ginsberg, um dos outros pais; e, para a minha surpresa e absoluta igonorância juvenil, outro pai, o meu mesmo, tinha o grande clássico deste escritor na estante: "O Uivo" (uma edição da L&PM dos anos de 1980 que vinha acompanhado do poema "Kadish" e outros). Acho que a coisa começou a se desenvolver mais ou menos a partir daí... E de todos os poemas do livro - muitos totalmente lisérgicos, doidos - um ainda me emociona bastante:
"O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação
o peso
o peso que carregamos
é o amor.
Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano -
sai para fora do coração
ardendo de pureza -
pois o fardo da vida
é o amor,
mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.
Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor -
quer esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
- não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contido
quando negado:
o peso é demasiado
- deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.
(...)"
Lembro, também, que, como sempre foi de costume na minha vida, isso gerou outra obsessão meio nerd naquele momento: assim como acontecera com o Bukowski, resolvi ir atrás de outros poetas de estilo semelhante ao de Ginsberg; cheguei ao velho Walt Whitman, que na verdade era totalmente diferente. Todavia - de novo - via ali algo tão verdadeiro, tão sincero, que nem a metáfora mais brilhante conseguiria substituir...
"Vivas àqueles que levaram a pior!
E àqueles cujos navios de guerra
afundaram no mar!
E a todos os generais
das estratégia perdidas,
que foram todos heróis!
E ao sem-número dos heróis desconhecidos,
equivalentes aos heróis maiores
que se conhecem!"
Mas se a questão é falar sobre o Dia NACIONAL da Poesia, o que isso tudo significa? Bom, o que eu sei é que meu comportamento adolescente "pseudoliberal" daquela época me deixara muito preso a referências estrangeiras, principalmente as norte-americanas. Ok, eu era "do rock", usava camiseta de banda (ainda uso), tinha um cabelo comprido ridículo, horroroso (esse eu não uso mais, ainda bem); era normal esse vínculo. E como eu sempre tive uma certa tendência nerd, um conservadorismo disfarçado (como é particular a muitos jovens) não me fez ir muito além - até com relação ao Bukowski, demorei muito para constatar que sua grande obra estava mesmo era na poesia, não na prosa (pelo menos hoje eu acho isso). Mas lá pelas tantas eu cheguei ao Paulo Leminski - e aí sim é que a coisa ficou intensa.
Hoje, um dia após o Dia Nacional da Poesia, minha lembrança mais carinhosa sobre meu contato com a poesia está ligada a ele, o poeta curitibano que citava muitas das minhas referências como leitor aqui mencionadas em suas obras; e mesmo hoje, diferentemente de outros, este é o meu poeta preferido. Seja no ramo da poesia concreta, seja no poema-piada, seja no constante jogo de metalinguagem, enfim, por algum motivo este foi o poeta que eu escolhi... Há questões que vão muito além do valor estético e te tocam por dentro. A poesia de Leminski sempre fez isso comigo, sempre me trouxe uma sensação boa, mesmo que nunca precisasse ser transcendente - pra isso nós temos a Cecília Meireles:

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.
Por outro lado, a visão bem mais sintética de Leminski também é legal:

Razão de ser

Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece.
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
No final das contas, acho que poucos conseguem mostrar de forma tão clara a questão da criação quanto ele mesmo:
“Seria demais, certamente, supor que eu não precise mais da realidade. Seria de menos, todavia, suspeitar sequer que a realidade, essa velha senhora, possa ser a verdadeira mãe destes dizeres tão calares”
Também em função de Leminski, comecei a abrir meus horizontes. Hoje, como leitor de poesia, não diversifico tanto o cardápio, mas muita coisa, de fato, entrou nele: Vinicius de Moraes, Quintana, Drummond, Pessoa. E é por essas e outras que Paulo Leminski é o meu homenageado de hoje e de sempre, mas principalmente de hoje, no pós-Dia Nacional da Poesia.
(E o teu, quem é? Qual é o teu poema ou poeta preferido? Quais são os versos que tu mais gosta? Escreve aí, dos meu!)

domingo, 12 de fevereiro de 2012

"O Artista" e a metalinguagem

O Artista é um filme genial – e simplesmente imperdível! Fazia muito tempo que não me surpreendia tanto com um filme, e o mais interessante é que ele não tem quase nada que deva surpreender de fato. Explico: o filme de Michel Hazanavicius, basicamente, usa da referência (e da reverência) para contar a história de George Valentin, um astro do cinema mudo que testemunha o avanço da indústria cinematográfica com o advento do som, não conseguindo se adaptar a essa evolução. Num jogo frequente de metalinguagem, o diretor aposta em todos os códigos disponíveis para buscar uma identificação plena de seu filme com tal época. Neste sentido, o filme de Hazanavicius é, em grande parte, um culto àquele modelo industrial hollywoodiano que tomava corpo de forma significativa na década de 1920: desde os créditos iniciais aos movimentos de câmera, passando pelos cortes e pelo trabalho de expressão corporal dos atores (especialmente na forma de pronunciar as palavras), tudo faz parte de um universo facilmente identificável que certamente mereceu boa dose de observação por parte de seu diretor.

Marcado pelo aspecto iconográfico da história do cinema, portanto, O Artista reforça uma tendência contemporânea nas artes que está ligada ao exercício frequente da metalinguagem. Ao contar tal história, a obra dá ao público a possibilidade de confrontar a mudança que serve de base ao roteiro, visto que o próprio filme é mudo. Naquela que talvez seja a grande sequência de O Artista (na minha opinião, genial), o protagonista “descobre”, por assim dizer, estarrecido, o som, e percebemos e compartilhamos, igualmente, o ponto de vista do artista que agora se vê deslocado e ultrapassado; a primeira cena também merece destaque: em um dos “filmes dentro do filme”, o personagem de George Valentin (vivido brilhantemente pelo ator francês Jean Dujardin, que reforça nas caretas de ator canastrão de cinema mudo), é torturado por um algoz que apenas pede para ele que fale.
A “imersão” proposta por Hazanavicius não é nova, nem mesmo em seu temática, mas sugere uma outra leitura para este que foi um momento tão delicado do show business, onde muitas celebridades, técnicos, diretores e roteiristas perderam seus empregos ao não conseguirem se adaptar a uma ruptura tão significativa, que de forma abrupta praticamente sepultou os filmes mudos em cerca de dois anos – o que acabou sendo agravado, também, pelo crack da bolsa em 1929 e pela consequente depressão norte-americana. Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder, outra obra genial, também trata do tema, mas de forma muito mais soturna e realista; usa de uma estrutura narrativa moderna, ligada ao seu tempo, ao contrário de O Artista, que faz o oposto (a história do filme de Wilder, inclusive, usa de um artifício à época já conhecido dos leitores brasileiros: o narrador defunto); ao inserir sua narrativa num momento onde os filmes sonoros já estavam mais do que consolidados, Billy Wilder exercita sua metalinguagem também de forma diferenciada, escalando a atriz Gloria Swanson como sua “diva caída”, ideia dotada de uma brutalidade impressionante, visto que a própria atriz vivenciara o mesmo em sua trajetória (não tendo, porém, uma derrocada tão grande quanto sua personagem). Além disso, outras figuras relacionadas a esse período de transição povoam a história de Crepúsculo dos Deuses, como os diretores Erich von Stroheim e Cecil B. de Mille (este no papel dele mesmo), além de pequenas pontas de outras antigas personalidades do cinema mudo.

Ainda que tão marcado pelo excessivo grau de metalinguagem, O Artista se sustenta pela qualidade de seu personagem central e, principalmente, pelo envolvimento do mesmo com a personagem vivida pela atriz Bérénice Bejo. Naturalmente, não se trata de uma obra totalmente autônoma em função disso, pois sua forte ligação com as referências da estética cinematográfica são grande parte de sua estrutura. Esse tipo de jogo metalinguístico está muito presente nas artes na contemporaneidade, não só na narrativa cinematográfica, mas também nos quadrinhos e, em grande parte, na literatura. Neste último caso, trata-se de uma tendência que pode estar ligada a, no mínimo, três aspectos distintos: 1) uma certa “crise” na narrativa contemporânea, que parece não se interessar mais pelas “grandes” histórias – pelas grandes sagas que povoavam a literatura do passado (nenhum juízo de valor aqui); 2) uma forte tendência à narrativa autobiográfica, que frequentemente se utiliza dos personagens-escritores; e 3) o interesse mais do que presente (e, aparentemente, necessário para certos autores) de colocar em primeiro plano a manipulação dos limites da linguagem no seu próprio campo artístico, além de discuti-la.

Para além – ou aquém – de arroubos de criatividade de enredo, histórias mirabolantes e cheias de “trunfos” em sua narrativa, o uso da metalinguagem, em verdade, diverte. Arrisco até dizer que isso faz parte do forte grau de interação que todas as mídias e produtos artísticos parecem ter que carregar atualmente para terem destaque, onde, neste caso, interagir não está associado apenas ao conteúdo emocional e subjetivo. Propostas semelhantes ao filme de Michel Hazanavicius (que pode soar extremamente inovador para muita gente quando na verdade não o é) podem ser vistas em muitas outras obras de diferentes épocas e formatos, como o romance de Paulo Leminski Agora é que são elas, que li apenas recentemente, mesmo tanto tempo depois de conhecer bem a poesia deste autor que julgo brilhante. Uma espécie de “compêndio” de elementos da teoria da literatura tratados de forma paródica em uma narrativa um tanto caótica, o livro é uma diversão hilariante para quem domina certos elementos da área. Nisso, contudo, está sua limitação. Por outro lado, a proposta de um exercício de metalinguagem parece ser essencialmente esta: divertir e entreter iniciados, na medida em que também propõe algum grau de reflexão sobre o objeto artístico em discussão. Pode soar até pedante dizer isso: "iniciados", mas esta é a grande verdade nesses casos, onde quem não está familiarizado simplesmente não vê a mínima graça. Nesse sentido, para mim não há nada mais genial do que a obra do roteirista de histórias em quadrinhos Alan Moore: é visível em boa parte de seus livros o esforço por compreender os elementos estruturantes dos quadrinhos, principalmente no que tange a sua narratividade, seja no revisionismo do herói e do super-herói proposto em Watchmen, seja ao contemplar a tradição literária na série A Liga Extraordinária, uma vez que percebe nesta tradição, também, aquilo que, por sua vez, construiu o personagem de ficção nas HQs. O cinema de Quentin Tarantino e os filmes de Brian de Palma, por exemplo, são outras manifestações claras de que, paradoxalmente, a originalidade e a criatividade encontram-se na forma de juntar as peças de um mosaico de referências. Em grande parte, esta postura estética é, também, uma necessidade de entender o veículo com o qual se está lidando e os aspectos que envolvem a criação - e este, parece-me, é o ponto central de O Artista.

Acredito que o que mais interessa nesse tipo de tendência é a forma como tais obras parecem transpirar paixão por aquilo que discutem através de suas ligações internas e externas. E talvez seja isso que realmente importa: seja em tom de homenagem ou até mesmo a fim de desconstruir, há que se ressaltar que o exercício da metalinguagem exige um entendimento mínimo da mídia sobre a qual o objeto se sustenta; quando no primeiro caso - a homenagem -, entretanto, temos obras como O Artista, que está carregado de algo que falta a muitas histórias mirabolantes, virtuosísticas tecnicamente ou mesmo pretensiosas (esteticamente ou intelectualmente falando): é um filme com alma – e talvez só por isso mereça ser visto e revisto.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

"O Apanhador no Campo de Centeio": meu livro, minha narrativa de formação em todos os sentidos.

Se me perguntam qual é o “livro da minha vida”, digo sem pestanejar que são pelo menos três: Hollywood, de Charles Bukowski e On The Road, de Jack Kerouak, que direcionaram minhas principais preferências estéticas, e aquele que mais me mexeu com as minhas emoções: O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger. O livro de Salinger é tido por muitos como a obra que “inventou a adolescência” no mundo moderno, transformado pelas modificações do pós-guerra. Salinger e sua obra cristalizaram uma tipologia do romance (que se estende para outras formas narrativas) classificada como narrativa de formação. É característica marcante das histórias de formação a presença de personagens jovens mal tocados ainda pelo mundo adulto, influenciados permanentemente por rituais de passagem que marcam suas vidas a cada segundo; momentos de “iniciação” variados que vão desde a primeira festa, o primeiro beijo, a experiência de maturação sexual até o primeiro emprego, a saída de casa e o rompimento simbólico com as figuras materna e paterna.


Holden Coulfield, o protagonista de O Apanhador no Campo de Centeio, é a síntese da passagem do tempo, mas de um período muito específico da vida, que se situa, geralmente, entre os dezessete e dezoito anos de idade, passagem essa que, ritualisticamente, estabelecemos como a virada de uma vivência adolescente para o chamado mundo adulto. Na verdade, o início de uma nova vida, de fato. Essa “vida nova”, cheia de novas e maduras responsabilidades, assusta Holden. Diferentemente da grande maioria dos romances de formação de caráter juvenil, não há uma perspectiva entusiasta e eloquente acerca da novidade e da liberdade que a maturidade pode trazer no vislumbre de um “mundo novo” que estava obscuro para o personagem. As responsabilidades tão amedrontadoras que chegam para Holden não têm, necessariamente, a ver com trabalho, mas sim com uma sentida quebra de ingenuidade de um ser às portas do universo dos “grandes”; portas que ele deverá irromper, obrigatória e inevitavelmente. Nesse sentido, podemos lembrar oportunamente da canção da banda Engenheiros do Hawaii “Somos quem podemos ser” (composta por Humberto Gessinger).

Na canção de Gessinger, as metáforas, apesar de ocultas no corpo do texto, completam-se ao longo dos versos: a juventude dá o presente de pensar com a fantasia e de, deliberadamente, ser o que se quiser ser, a qualquer momento, mesmo rodeado de contradições (tão particulares ao universo adolescente); o que cria uma sensação de liberdade apenas sentida com a presença das responsabilidades do mundo adulto quando, então, talvez já seja tarde demais para dar-se conta. Uma canção emblemática, de fato, mas de conteúdo recorrente na tradição poética, pois, se bem lembrarmos, essa é também uma tendência evasiva muito forte na poesia romântica da chamada matriz “egótica”, voltada à melancolia e à tristeza, onde a saudade da infância é comparada, tragicamente, com o mundo adulto. Como clássico exemplo, tem-se o poema de Casimiro de Abreu "Meus Oito Anos".


Inicialmente, Holden, o personagem de Salinger, parece distanciar-se do seu presente, negar seus amigos e seu passado mais recente. Ao longo de sua trajetória de volta para o lar, lembranças cruzam seu caminho, algumas com as quais ele não gostaria de cruzar; outras fazem-no rever seus próprios conceitos, pois mostram-se incongruentes para com sua personalidade naquele momento presente; em outros casos, as experiências que Holden retoma são, simplesmente, inevitáveis e, muitas vezes, inusitadas. Tudo isso justifica a sua jornada em busca de lembranças ainda mais remotas, por fim chegando, portanto, à irmã caçula, Phoebe, talvez um símbolo de uma ingenuidade que ele nunca mais terá. A interpretação sobre essa grande metáfora que percorre o livro o tempo inteiro é muito bem vista no esclarecedor trecho em que, inclusive, podemos entender um pouco melhor o título quase intraduzível da obra:


“(...) fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o que eu tenho que fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice.” (P. 168).

Em O Apanhador no Campo de Centeio, a jornada de amadurecimento (ou de negação desse processo) se dá na perspecitva de sua própria figura central, uma vez que o livro é narrado em primeira pessoa. Dessa forma, a experiência do protagonista se dá de forma extremamente subjetiva, até mesmo em seu profundo grau de melancolia, que pode ser visto, naturalmente, como algo enfadonho – afinal de contas, Salinger criou um personagem que não deveria ser muito simpático ao leitor. Assim, não se chegam aos arroubos impressionistas de figuras como o Sérgio de O Ateneu, de Raul Pompeia, ou da intensidade dos traumas da juventude vistos em obras recentes da literatura brasileira como Mãos de Cavalo, de Daniel Galera, e O Diário da Queda, de Michel Laub, exemplos interessantes de diálogo com isto que se define como narrativa de formação.


Quando penso em J. D. Salinger, lembro de um livro que ajudou muito em minha trajetória para que eu mesmo compreendesse quem, de fato, eu era. Ok, talvez não tenha sido tudo isso, mas sem dúvida foi uma obra que me tocou muito, e foi talvez uma das primeiras vezes em que pude sentir o que acontece quando a arte consegue dialogar verdadeiramente com o espectador, sem necessariamente facilitar esse caminho, ser simplista ou algo do gênero. Enfim, sou muito suspeito para falar. Li O Apanhador no Campo de Centeio pela primeira vez aos dezessete anos e, naquela época, acho que me parecia um pouco com Holden Caulfield. Talvez fosse apenas a idade, talvez o fato de ter saído recentemente da escola onde, apenas poucos meses antes, encontrava-me no Ensino Médio e tive que cair “de cabeça” na universidade, ainda em pleno desenvolvimento da minha personalidade.


Acredito que se veem muitos “Caulfields” por aí. Vemos muitos que, como ele, insistem em, imaturamente, buscar refúgio nas lembranças e demoram a encarar os fatos. Mas não vou mentir, tenho que dizer também que ser estupidamente nostálgico dá um certo prazer; ser um pouco “sonso”, um tanto amargo e ainda querer manter um pedaço de ingenuidade na nossa constituição que recorre tanto à racionalidade é um pouco saudável. Afinal, quem disse que a racionalidade não é também uma grande fuga?! O que espanta em Caulfield é sua espontaneidade em ser desta forma; acho que isso é o que o torna, pelo menos para mim, tão apaixonante – assim como é admirável e fascinante a fase da adolescência. O que é curioso é que a maioria dos leitores repudia Holden – e com razão: sua imaturidade, sua postura um tanto arrogante e questionadora de tudo tornam seu mundo algo muito sem graça, o grande paradoxo com o “mito da adolescência”: a fase das grandes experiências e descobertas. Aí está o grande mérito de Salinger ao fazer com que sua obra adquira uma vivacidade rara, o que nesse caso desconfio ser uma negação involuntária daquilo que fomos ou, muitas vezes, ainda somos.


Como todo fã, obviamente fico chateado quando alguém demonstra antipatia por Caulfield (com Salinger não, mas com seu personagem, certamente). Aí está o maior traço de espontaneidade e naturalidade dessa figura emblemática da literatura mundial: um personagem que consegue falar por si, quase que uma instituição dentro da arte literária, atemporal, mas que fala sobre um tempo que marca a todos e que deixa impressões sempre indeléveis. Não nos culpemos: nos traímos lendo o romance de J. D. Salinger, mas somente porque ele e Holden nos seduzem. Sim, Holden, muitas vezes, é um chato, entretanto, somos facilmente atraídos por sua esquisitisse e sua sensibilidade confusa, de forma tão contraditoriamente espontânea quanto o próprio protagonista de O Apanhador no Campo de Centeio se deixaria levar. Um exemplo prático: como professor, já trabalhei com O Apanhador no Campo de Centeio várias vezes; em geral, os alunos são unânimes em afirmar que a obra é ótima, mas o protagonista irrita-os profundamente; ao questioná-los sobre certas ações, chega-se quase sempre à óbvia conclusão, qual seja a de que, apesar de figurar em uma obra dos anos de 1950, Holden Caulfield está ainda muito próximo deles, daquilo que eles são. Afinal, o que essa reação em relação ao personagem tão frequente entre alunos que têm entre 16 e 18 quer dizer? Eu tenho minhas teorias, mas o fato é que o tempo de Salinger nas minhas aulas já passou, pelo menos por ora. Assim como ele me ajudou a crescer como pessoa, acho que faz parte de minha própria jornada de amadurecimento desvencilhar-me dele e procurar outras formas de ler a passagem do tempo através dos meus alunos.


Na vida de um professor, passamos por transformações constantes na medida em que nossa postura como educador modifica-se, afinal, ser educador, no sentido pleno da palavra, vai além de “professar” o saber: é lidar com os sentimentos, as ligações afetivas que se estabelecem com os alunos, e não há nada mais orgânico do que lidar com as emoções. Percebi isso apenas recentemente e não sei se o que estou escrevendo está claro... No último Dezembro, vendo uma turma de alunos que acompanhei durante três anos do Ensino Médio se formar, senti uma profunda tristeza e um certo vazio tomarem conta de mim, e talvez não fosse apenas pela turma em si... Foi aquele momento epifânico em que se sabe que algo mudou. Ao que tudo indica, havia algo simbolizado naquela turma também... Não sei, mas sei que com o velho Holden Caulfield aprendi de fato que na vida existem sempre momentos de mudança e eles são, muitas vezes, imperceptíveis, pois não surgem de forma objetiva. Aprendi isso quando tinha dezessete anos. Tendo O Apanhador em perspectiva, foi aparentemente fácil racionalizar sobre aquele momento, pois sempre fui uma pessoa que gosta de marcar as mudanças a partir de rituais de passagem. Naquela vez também parecia faltar algo e, na verdade, as lacunas estavam apenas sendo preenchidas por novas experiências. Reaprendo o mesmo agora.


Na vida de um educador, sua personalidade está contantemente vinculada ao seu ofício e não há como dizer que certas mudanças fazem parte tão somente do mundo do trabalho... Os mundos se confudem. E enquanto tento entender melhor as minhas próprias mudanças – emocionais, de perspectiva, etc. –, dessa vez farei o caminho contrário: vou me despedindo de Salinger como que para marcar mais uma passagem. Ele sairá das minhas aulas, como já disse, e assim minha leitura d’O Apanhador repousará nas antigas sensações. Pelo menos por ora. Pelo menos até o próximo desencontro.