quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

"O Apanhador no Campo de Centeio": meu livro, minha narrativa de formação em todos os sentidos.

Se me perguntam qual é o “livro da minha vida”, digo sem pestanejar que são pelo menos três: Hollywood, de Charles Bukowski e On The Road, de Jack Kerouak, que direcionaram minhas principais preferências estéticas, e aquele que mais me mexeu com as minhas emoções: O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger. O livro de Salinger é tido por muitos como a obra que “inventou a adolescência” no mundo moderno, transformado pelas modificações do pós-guerra. Salinger e sua obra cristalizaram uma tipologia do romance (que se estende para outras formas narrativas) classificada como narrativa de formação. É característica marcante das histórias de formação a presença de personagens jovens mal tocados ainda pelo mundo adulto, influenciados permanentemente por rituais de passagem que marcam suas vidas a cada segundo; momentos de “iniciação” variados que vão desde a primeira festa, o primeiro beijo, a experiência de maturação sexual até o primeiro emprego, a saída de casa e o rompimento simbólico com as figuras materna e paterna.


Holden Coulfield, o protagonista de O Apanhador no Campo de Centeio, é a síntese da passagem do tempo, mas de um período muito específico da vida, que se situa, geralmente, entre os dezessete e dezoito anos de idade, passagem essa que, ritualisticamente, estabelecemos como a virada de uma vivência adolescente para o chamado mundo adulto. Na verdade, o início de uma nova vida, de fato. Essa “vida nova”, cheia de novas e maduras responsabilidades, assusta Holden. Diferentemente da grande maioria dos romances de formação de caráter juvenil, não há uma perspectiva entusiasta e eloquente acerca da novidade e da liberdade que a maturidade pode trazer no vislumbre de um “mundo novo” que estava obscuro para o personagem. As responsabilidades tão amedrontadoras que chegam para Holden não têm, necessariamente, a ver com trabalho, mas sim com uma sentida quebra de ingenuidade de um ser às portas do universo dos “grandes”; portas que ele deverá irromper, obrigatória e inevitavelmente. Nesse sentido, podemos lembrar oportunamente da canção da banda Engenheiros do Hawaii “Somos quem podemos ser” (composta por Humberto Gessinger).

Na canção de Gessinger, as metáforas, apesar de ocultas no corpo do texto, completam-se ao longo dos versos: a juventude dá o presente de pensar com a fantasia e de, deliberadamente, ser o que se quiser ser, a qualquer momento, mesmo rodeado de contradições (tão particulares ao universo adolescente); o que cria uma sensação de liberdade apenas sentida com a presença das responsabilidades do mundo adulto quando, então, talvez já seja tarde demais para dar-se conta. Uma canção emblemática, de fato, mas de conteúdo recorrente na tradição poética, pois, se bem lembrarmos, essa é também uma tendência evasiva muito forte na poesia romântica da chamada matriz “egótica”, voltada à melancolia e à tristeza, onde a saudade da infância é comparada, tragicamente, com o mundo adulto. Como clássico exemplo, tem-se o poema de Casimiro de Abreu "Meus Oito Anos".


Inicialmente, Holden, o personagem de Salinger, parece distanciar-se do seu presente, negar seus amigos e seu passado mais recente. Ao longo de sua trajetória de volta para o lar, lembranças cruzam seu caminho, algumas com as quais ele não gostaria de cruzar; outras fazem-no rever seus próprios conceitos, pois mostram-se incongruentes para com sua personalidade naquele momento presente; em outros casos, as experiências que Holden retoma são, simplesmente, inevitáveis e, muitas vezes, inusitadas. Tudo isso justifica a sua jornada em busca de lembranças ainda mais remotas, por fim chegando, portanto, à irmã caçula, Phoebe, talvez um símbolo de uma ingenuidade que ele nunca mais terá. A interpretação sobre essa grande metáfora que percorre o livro o tempo inteiro é muito bem vista no esclarecedor trecho em que, inclusive, podemos entender um pouco melhor o título quase intraduzível da obra:


“(...) fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o que eu tenho que fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice.” (P. 168).

Em O Apanhador no Campo de Centeio, a jornada de amadurecimento (ou de negação desse processo) se dá na perspecitva de sua própria figura central, uma vez que o livro é narrado em primeira pessoa. Dessa forma, a experiência do protagonista se dá de forma extremamente subjetiva, até mesmo em seu profundo grau de melancolia, que pode ser visto, naturalmente, como algo enfadonho – afinal de contas, Salinger criou um personagem que não deveria ser muito simpático ao leitor. Assim, não se chegam aos arroubos impressionistas de figuras como o Sérgio de O Ateneu, de Raul Pompeia, ou da intensidade dos traumas da juventude vistos em obras recentes da literatura brasileira como Mãos de Cavalo, de Daniel Galera, e O Diário da Queda, de Michel Laub, exemplos interessantes de diálogo com isto que se define como narrativa de formação.


Quando penso em J. D. Salinger, lembro de um livro que ajudou muito em minha trajetória para que eu mesmo compreendesse quem, de fato, eu era. Ok, talvez não tenha sido tudo isso, mas sem dúvida foi uma obra que me tocou muito, e foi talvez uma das primeiras vezes em que pude sentir o que acontece quando a arte consegue dialogar verdadeiramente com o espectador, sem necessariamente facilitar esse caminho, ser simplista ou algo do gênero. Enfim, sou muito suspeito para falar. Li O Apanhador no Campo de Centeio pela primeira vez aos dezessete anos e, naquela época, acho que me parecia um pouco com Holden Caulfield. Talvez fosse apenas a idade, talvez o fato de ter saído recentemente da escola onde, apenas poucos meses antes, encontrava-me no Ensino Médio e tive que cair “de cabeça” na universidade, ainda em pleno desenvolvimento da minha personalidade.


Acredito que se veem muitos “Caulfields” por aí. Vemos muitos que, como ele, insistem em, imaturamente, buscar refúgio nas lembranças e demoram a encarar os fatos. Mas não vou mentir, tenho que dizer também que ser estupidamente nostálgico dá um certo prazer; ser um pouco “sonso”, um tanto amargo e ainda querer manter um pedaço de ingenuidade na nossa constituição que recorre tanto à racionalidade é um pouco saudável. Afinal, quem disse que a racionalidade não é também uma grande fuga?! O que espanta em Caulfield é sua espontaneidade em ser desta forma; acho que isso é o que o torna, pelo menos para mim, tão apaixonante – assim como é admirável e fascinante a fase da adolescência. O que é curioso é que a maioria dos leitores repudia Holden – e com razão: sua imaturidade, sua postura um tanto arrogante e questionadora de tudo tornam seu mundo algo muito sem graça, o grande paradoxo com o “mito da adolescência”: a fase das grandes experiências e descobertas. Aí está o grande mérito de Salinger ao fazer com que sua obra adquira uma vivacidade rara, o que nesse caso desconfio ser uma negação involuntária daquilo que fomos ou, muitas vezes, ainda somos.


Como todo fã, obviamente fico chateado quando alguém demonstra antipatia por Caulfield (com Salinger não, mas com seu personagem, certamente). Aí está o maior traço de espontaneidade e naturalidade dessa figura emblemática da literatura mundial: um personagem que consegue falar por si, quase que uma instituição dentro da arte literária, atemporal, mas que fala sobre um tempo que marca a todos e que deixa impressões sempre indeléveis. Não nos culpemos: nos traímos lendo o romance de J. D. Salinger, mas somente porque ele e Holden nos seduzem. Sim, Holden, muitas vezes, é um chato, entretanto, somos facilmente atraídos por sua esquisitisse e sua sensibilidade confusa, de forma tão contraditoriamente espontânea quanto o próprio protagonista de O Apanhador no Campo de Centeio se deixaria levar. Um exemplo prático: como professor, já trabalhei com O Apanhador no Campo de Centeio várias vezes; em geral, os alunos são unânimes em afirmar que a obra é ótima, mas o protagonista irrita-os profundamente; ao questioná-los sobre certas ações, chega-se quase sempre à óbvia conclusão, qual seja a de que, apesar de figurar em uma obra dos anos de 1950, Holden Caulfield está ainda muito próximo deles, daquilo que eles são. Afinal, o que essa reação em relação ao personagem tão frequente entre alunos que têm entre 16 e 18 quer dizer? Eu tenho minhas teorias, mas o fato é que o tempo de Salinger nas minhas aulas já passou, pelo menos por ora. Assim como ele me ajudou a crescer como pessoa, acho que faz parte de minha própria jornada de amadurecimento desvencilhar-me dele e procurar outras formas de ler a passagem do tempo através dos meus alunos.


Na vida de um professor, passamos por transformações constantes na medida em que nossa postura como educador modifica-se, afinal, ser educador, no sentido pleno da palavra, vai além de “professar” o saber: é lidar com os sentimentos, as ligações afetivas que se estabelecem com os alunos, e não há nada mais orgânico do que lidar com as emoções. Percebi isso apenas recentemente e não sei se o que estou escrevendo está claro... No último Dezembro, vendo uma turma de alunos que acompanhei durante três anos do Ensino Médio se formar, senti uma profunda tristeza e um certo vazio tomarem conta de mim, e talvez não fosse apenas pela turma em si... Foi aquele momento epifânico em que se sabe que algo mudou. Ao que tudo indica, havia algo simbolizado naquela turma também... Não sei, mas sei que com o velho Holden Caulfield aprendi de fato que na vida existem sempre momentos de mudança e eles são, muitas vezes, imperceptíveis, pois não surgem de forma objetiva. Aprendi isso quando tinha dezessete anos. Tendo O Apanhador em perspectiva, foi aparentemente fácil racionalizar sobre aquele momento, pois sempre fui uma pessoa que gosta de marcar as mudanças a partir de rituais de passagem. Naquela vez também parecia faltar algo e, na verdade, as lacunas estavam apenas sendo preenchidas por novas experiências. Reaprendo o mesmo agora.


Na vida de um educador, sua personalidade está contantemente vinculada ao seu ofício e não há como dizer que certas mudanças fazem parte tão somente do mundo do trabalho... Os mundos se confudem. E enquanto tento entender melhor as minhas próprias mudanças – emocionais, de perspectiva, etc. –, dessa vez farei o caminho contrário: vou me despedindo de Salinger como que para marcar mais uma passagem. Ele sairá das minhas aulas, como já disse, e assim minha leitura d’O Apanhador repousará nas antigas sensações. Pelo menos por ora. Pelo menos até o próximo desencontro.