sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

"Revolta no Inferno", de Luis Fernando Veríssimo


Todo fim de ano o Diabo recebe um pequeno grupo para jantar no que chama de sua anticobertura, um duplex no último subsolo do Inferno, escolhendo entre as almas condenadas as mais interessantes e de melhor papo. Os pratos são sempre grelhados e o vinho é de produção local, marca Diabo, mas o principal é que todos se divertem, falando mal de Deus e todo mundo. Mas, ultimamente, a questão de quem merece e quem não merece estar no Inferno vem sendo muito discutida nos jantares, e as queixas dos que se acham injustiçados por estarem lá se multiplicam. O Diabo tenta cortar os lamurientos da sua lista de convidados, mas não pode prescindir da presença de Oscar Wilde, um dos seus comensais favoritos, apesar das suas constantes críticas à comida, à companhia e à ausência de ar condicionado, e que foi quem primeiro expressou sua revolta. E o Diabo já sabe que em breve estará enfrentando uma verdadeira rebelião de almas pedindo revisão de sentença e perdão retroativo. E que seus jantares nunca mais serão os mesmos.

Tudo começou quando Wilde, fazendo uma cara feia depois de provar o vinho, comentou como estavam se tornando comuns, na Terra, o casamento entre homossexuais.
— Eu fui preso, execrado e excomungado por ser homossexual — disse Wilde. — Se fosse hoje, em vez de condenado e exilado, eu poderia ser, sei lá, um conselheiro matrimonial. Não faz muito, a mesma igreja anglicana que me mandou para cá ordenou um bispo gay. O que é que eu estou fazendo aqui?
O Diabo tentou mudar de assunto, mas Wilde continuou:
— Me transfira para o céu, D., nada pessoal contra você, mas aposto que o vinho lá é melhor. Sem falar no clima.

Não adiantou o Diabo argumentar que nem ele nem Deus são senhores dos tempos que mudam, ou da justiça divina, que não tem corregedoria ou apelação. Wilde só prometeu epigramas cada vez mais pesados, mas o Diabo se prepara para a gritaria dos indignados do Inferno.

Como os que foram mandados para o Inferno por usura, no tempo em que era pecado. E — como gosta de lembrar o Diabo, com um sorriso malicioso — a Igreja ainda não inventara o Purgatório justamente para acomodar os usurários, pois sem eles não haveria empréstimo a juros, bancos e sistemas financeiros.

Hoje a usura não só é o que faz o capitalismo rodar como é o capitalismo financeiro que manda no mundo. E, principalmente, não é mais pecado, pois os juros não são mais uma abominação aos olhos do Senhor, e até a Igreja tem bancos. E os condenados por usura no Inferno perguntam se não têm direito à mesma respeitabilidade conquistada pelos banqueiros, que hoje enriquecem em vida sem o risco de as suas almas penarem na morte, e à absolvição. Ou pelo menos a um up grade para o Purgatório.

Extraído de Zero Hora, 24 e 25 de Dezembro de 2007, página 03.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

A Realidade Ficcionalizada ou a Ficcionalização do Real











A seca e seus retirantes constituem uma temática fortemenete desenvolvida pelo momento literário denominado Romance de 30. Alguns autores que produziram nessa época utilizaram a temática social como ponto de partida para suas criações literárias. Entre eles, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos deram ênfase ao sofrimento do retirante e ilustraram suas narrativas com seu universo árido, imerso em dor. Graciliano, em "Vidas Secas", deu ao retirante caráter humano, por meio de um narrador em terceira pessoa que mobiliza seu foco narrativo, colocando-o ao lado de cada personagem da família de Fabiano. Se até então o sertanejo surgia, com maior fôlego, como um tipo, a personagem Fabiano demonstra-nos que, apesar de sua “linguagem cantada, monossilábica e gutural”, o sertanejo observava o mundo e, mais que isso, experenciava-o.

Nesta postagem, sugiro a fruição de um conjunto de produções artísticas que observam a seca suas personagens. Podemos começar com um trecho de Graciliano, no qual fica evidenciado o foco narrativo e a percepção de mundo da personagem Fabiano que se sente emparedado, asfixiado, em meio a uma multidão que não o percebe:


“A multidão apertava-o mais que a roupa, embaraçava-o. De perneiras, gibão e guarda-peito, andava metido numa caixa, como tatu, mas saltava no lombo de um bicho e voava na catinga. Agora não podia virar-se: mãos e braços roçavam-lhe o corpo. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. A sensação que experimentava não diferia muito da que tinha ao ser preso. Era como se as mãos e os braços da multidão fossem agarrá-lo, subjugá-lo, espremê-lo num canto de parede. Olhou as caras em redor. Evidentemente as criaturas que se juntavam ali não o viam, mas Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se em questões e acabar mal a noite”, pág. 75.

Eu não poderia deixar de citar o magistral vídeo clipe “Segue o Seco”, de Marisa Monte, dirigido por Cláudio Torres e José Henrique Fonseca, com genial fotografia de Breno Silveira, no qual temos a presença de três palavras centrais para o universo sertanejo: chuva, gado e seca. As imagens são belíssimas e trazem a sugestão do aspecto físico de diferentes “Fabianos”.



Para percebermos a intensidade do diálogo elaborado a partir da temática, sugiro a leitura de Leandro Gomes de Barros, cordelista que escreveu “A Seca do Ceará”:

“Seca as terras as folhas caem,
Morre o gado sai o povo,
O vento varre a campina,
Rebenta a seca de novo;
Cinco, seis mil emigrantes
Flagelados retirantes
Vagam mendigando o pão,
Acabam-se os animais
Ficando limpo os currais
Onde houve a criação.
(...)
Vê-se uma mãe cadavérica
Que já não pode falar,
Estreitando o filho ao peito
Sem o poder consolar
Lança-lhe um olhar materno
Soluça implora ao Eterno
Invoca da Virgem o nome
Ela débil triste e louca
Apenas beija-lhe a boca

E ambos morrem de fome”.



“Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente pra lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos”,
"Vidas Secas", pág. 128.