De Andy
Warhol a Jean-Michel Basquiat, parece haver um caminho natural da pop
art dos anos 1960 à arte urbana que se manifesta contemporaneamente.
Junto disso, os próprios processos artísticos parecem igualar-se na forma como
conclamam por sua liberdade de estilo: se latas
de sopa e imagens de ícones do cinema serigrafados com múltiplas paletas de
cores renovaram a arte moderna, colocando em voga uma possível aproximação
com a cultura de massa, o grafite que
se expressa nos muros das cidades de hoje manifesta, sem qualquer pudor,
influências que vão dos desenhos animados às histórias em quadrinhos de humor e os mangás.
Roy Lichtenstein, um dos pais da pop art, já anunciava a atenção à comunicabilidade expressiva da
arte sequencial (outro nome dado às HQs) e seu conteúdo gráfico, expresso nas
explosões de cores e na hibridização de sua linguagem. Através de uma visão
crítica e irônica para com a arte sequencial, Lichtenstein antecipou o diálogo
entre a plasticidade das imagens dos quadrinhos com as artes plásticas. Hoje,
no entanto, tornou-se até comum ir a uma livraria com acervo de reconhecida
qualidade e enxergar belos encadernados luxuosos, com preços tão exorbitantes
quanto belas reproduções de quadros de pintores famosos; nesses espaços, os
quadrinhos flertam com “alta cultura”, com a “boa literatura” e ganham novos
públicos, na mesma medida em que recebem certa “permissão” para circular,
deixando de lado velhos tabus e preconceitos. Da mesma forma, muitos
grafiteiros deixaram a marginalidade e os guetos, saíram dos subúrbios das
metrópoles para invadir os museus e as grandes galerias do mundo todo.
Serigrafias de Andy Warhol (1967)
"M-Maybe", Roy Lichtenstein (esq.) e obra de Jean-Michel Basquiat (dir.)
Como nos dizeres de
Nestor Canclini, grafite e quadrinhos são gêneros artísticos “constitucionalmente
híbridos”, tanto estruturalmente quanto à forma de recepção e circulação. E a
hibridização de métodos e processos artísticos é uma das máximas da arte
contemporânea. Nessa hibridização, fundem-se posturas e conceitos, diluem-se
noções antes estabelecidas que agora tornam-se fluidas nos diálogos
pós-modernos – por isso, a permanente dificuldade de estabelecer as
tendências estéticas contemporâneas para além de discursos genéricos acerca da
fragmentação, da instabilidade, da liquidez dos tempos atuais. Nesses
dois exemplos – grafite e HQs –, o movimento contemporâneo que os retira da
marginalidade (em comparação com outras manifestações já estabelecidas a partir
de noções de valor), ao mesmo tempo,
estabelece um novo cânone, logo, novos valores para determinadas obras e autores dessas linguagens; a permissividade se
estabelece a partir de condições, portanto, arbitrárias, com isso, diluem-se
outras relações: por exemplo, se os quadrinhos estão atrelados à comunicação
massiva (pois surgem na cultura de massa),
hoje tal noção é colocada em xeque, pois tudo pode ser massivo, na mesma medida
em que pequenos públicos podem se formar em torno de artistas menores –
garantindo a sobrevivência profissional destes, sem a necessidade da
mecanização industrial; nas HQs, a relação de valor estético que se estabelece
entre determinados autores e graphic
novels (rótulo editorial “da moda” que auxilia nesse processo de valoração),
segmenta os públicos a ponto de não os tornar, todos, objetos de grande
circulação, logo, a noção de cultura de massa, neste caso, desfaz-se.
Se a ideia de cultura
de massa vem, também, historicamente, para diferenciar as acepções acerca do que é “popular” (pois nem todo “popular” é o que é
consumível comercialmente, bem como nem tudo que é popular pertence somente ao
folclore ou à tradição), o grafite, no contexto do hip hop como movimento
cultural das zonas urbanas, bagunça isso ainda mais. Hoje ainda encarados com
preconceito por boa parte da população, os grafiteiros ocuparam a cidade e
também o mercado da arte contemporânea, sendo reconhecidos por sua
inventividade e gestos de profunda liberdade artística. Esse grafismo urbano
tem, também, algumas raízes históricas que ajudam a entendê-lo no momento em
que Jean-Michel Basquiat torna-se um artista realmente conhecido a partir dos anos
1980: há um gesto quase simbólico no momento em que Andy Warhol conhece Basquiat
e passa a ter sua amizade; é como se as artes houvessem trilhado um caminho
natural até chegar nesse ponto – das vanguardas à arte pop, da pop art à street art (de Warhol a Basquiat).
Grafite de Basquiat
É preciso notar,
contudo, que o grafite – para além de Basquiat – tem, ainda, um forte vínculo
com a cultura hip hop, é um de seus “elementos.
O grafite e o hip hop “bagunçam” a
dicotomia do “popular” por não serem vinculados diretamente às noções
pré-estabelecidas no campo da arte com relação à massa ou à tradição; são, no
entanto, vinculados a elas de alguma forma: o grafite, por exemplo, é, a
princípio, uma intervenção urbana – em meio à multidão da metrópole, encontra a
massa, portanto; também, por outro lado, é igualmente vinculado a uma espécie
de tradição pictórica que vem desde as
pinturas das cavernas, passando pelas composições nas paredes de Igrejas, nos
vitrais, nas tapeçarias, chegando aos muralistas do século XX, como o mexicano
Diego Rivera; ao mesmo tempo, seu caráter
intervencionista traz outro apelo frequente da arte moderna – um dos mais
prestigiados artistas contemporâneos, por exemplo, Banksy, usa e abusa desse conceito, usando tanto o pincel quanto o spray nas ruas de Nova Iorque. O hip hop é a cultura que vem “da rua”,
“do gueto”, do subúrbio, enfim, para se manifestar nos grandes centros
metropolitanos e ser absorvida por todos; o que não impede que seus elementos
sofram movimentos constantes de “pasteurização”
até chegarem à massa – ou de “intelectualização”
para que sejam aceitos pela crítica e
nas altas esferas eruditas – consequências de sua absorção ou “exigências” para
tanto.
Obra de Banksy
Grafite d'Osgemeos.
Grafite d'Osgemeos.
Assim,
mais uma vez, como qualquer fenômeno artístico, as artes se transformam, na
medida em que seus públicos também se diversificam. Manifestações periféricas,
tidas como marginais, ou ainda outras, tratadas durante décadas como “cultura
menor” ou mero entretenimento devido a sua relação com a cultura de massa,
repentinamente, passam a ser “aceitas”, “permitidas”. As consequências disso
são importantes para a evolução dos fenômenos artísticos, para a formação de um
público que possa, enfim, sustentar, literalmente, os autores para que estes
continuem investindo na criação. O preço a se pagar por isso é, de fato – sem
querer ser redundante, mas já o sendo –, o preço:
a noção de valor que vem acompanhada disso, seja ela estética ou de mercado.
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