quinta-feira, 4 de abril de 2013

Às margens da arte, muito perto das massas.

De Andy Warhol a Jean-Michel Basquiat, parece haver um caminho natural da pop art dos anos 1960 à arte urbana que se manifesta contemporaneamente. Junto disso, os próprios processos artísticos parecem igualar-se na forma como conclamam por sua liberdade de estilo: se latas de sopa e imagens de ícones do cinema serigrafados com múltiplas paletas de cores renovaram a arte moderna, colocando em voga uma possível aproximação com a cultura de massa, o grafite que se expressa nos muros das cidades de hoje manifesta, sem qualquer pudor, influências que vão dos desenhos animados às histórias em quadrinhos de humor e os mangás.
 
Roy Lichtenstein, um dos pais da pop art, já anunciava a atenção à comunicabilidade expressiva da arte sequencial (outro nome dado às HQs) e seu conteúdo gráfico, expresso nas explosões de cores e na hibridização de sua linguagem. Através de uma visão crítica e irônica para com a arte sequencial, Lichtenstein antecipou o diálogo entre a plasticidade das imagens dos quadrinhos com as artes plásticas. Hoje, no entanto, tornou-se até comum ir a uma livraria com acervo de reconhecida qualidade e enxergar belos encadernados luxuosos, com preços tão exorbitantes quanto belas reproduções de quadros de pintores famosos; nesses espaços, os quadrinhos flertam com “alta cultura”, com a “boa literatura” e ganham novos públicos, na mesma medida em que recebem certa “permissão” para circular, deixando de lado velhos tabus e preconceitos. Da mesma forma, muitos grafiteiros deixaram a marginalidade e os guetos, saíram dos subúrbios das metrópoles para invadir os museus e as grandes galerias do mundo todo.
 
Serigrafias de Andy Warhol (1967)
 
 
"M-Maybe", Roy Lichtenstein (esq.) e obra de Jean-Michel Basquiat (dir.)
 
 
Como nos dizeres de Nestor Canclini, grafite e quadrinhos são gêneros artísticos “constitucionalmente híbridos”, tanto estruturalmente quanto à forma de recepção e circulação. E a hibridização de métodos e processos artísticos é uma das máximas da arte contemporânea. Nessa hibridização, fundem-se posturas e conceitos, diluem-se noções antes estabelecidas que agora tornam-se fluidas nos diálogos pós-modernos – por isso, a permanente dificuldade de estabelecer as tendências estéticas contemporâneas para além de discursos genéricos acerca da fragmentação, da instabilidade, da liquidez dos tempos atuais. Nesses dois exemplos – grafite e HQs –, o movimento contemporâneo que os retira da marginalidade (em comparação com outras manifestações já estabelecidas a partir de noções de valor), ao mesmo tempo, estabelece um novo cânone, logo, novos valores para determinadas obras e autores dessas linguagens; a permissividade se estabelece a partir de condições, portanto, arbitrárias, com isso, diluem-se outras relações: por exemplo, se os quadrinhos estão atrelados à comunicação massiva (pois surgem na cultura de massa), hoje tal noção é colocada em xeque, pois tudo pode ser massivo, na mesma medida em que pequenos públicos podem se formar em torno de artistas menores – garantindo a sobrevivência profissional destes, sem a necessidade da mecanização industrial; nas HQs, a relação de valor estético que se estabelece entre determinados autores e graphic novels (rótulo editorial “da moda” que auxilia nesse processo de valoração), segmenta os públicos a ponto de não os tornar, todos, objetos de grande circulação, logo, a noção de cultura de massa, neste caso, desfaz-se.
 
Se a ideia de cultura de massa vem, também, historicamente, para diferenciar as acepções acerca do que é “popular” (pois nem todo “popular” é o que é consumível comercialmente, bem como nem tudo que é popular pertence somente ao folclore ou à tradição), o grafite, no contexto do hip hop como movimento cultural das zonas urbanas, bagunça isso ainda mais. Hoje ainda encarados com preconceito por boa parte da população, os grafiteiros ocuparam a cidade e também o mercado da arte contemporânea, sendo reconhecidos por sua inventividade e gestos de profunda liberdade artística. Esse grafismo urbano tem, também, algumas raízes históricas que ajudam a entendê-lo no momento em que Jean-Michel Basquiat torna-se um artista realmente conhecido a partir dos anos 1980: há um gesto quase simbólico no momento em que Andy Warhol conhece Basquiat e passa a ter sua amizade; é como se as artes houvessem trilhado um caminho natural até chegar nesse ponto – das vanguardas à arte pop, da pop art à street art (de Warhol a Basquiat).

Grafite de Basquiat


É preciso notar, contudo, que o grafite – para além de Basquiat – tem, ainda, um forte vínculo com a cultura hip hop, é um de seus “elementos. O grafite e o hip hop “bagunçam” a dicotomia do “popular” por não serem vinculados diretamente às noções pré-estabelecidas no campo da arte com relação à massa ou à tradição; são, no entanto, vinculados a elas de alguma forma: o grafite, por exemplo, é, a princípio, uma intervenção urbana – em meio à multidão da metrópole, encontra a massa, portanto; também, por outro lado, é igualmente vinculado a uma espécie de tradição pictórica que vem desde as pinturas das cavernas, passando pelas composições nas paredes de Igrejas, nos vitrais, nas tapeçarias, chegando aos muralistas do século XX, como o mexicano Diego Rivera; ao mesmo tempo, seu caráter intervencionista traz outro apelo frequente da arte moderna – um dos mais prestigiados artistas contemporâneos, por exemplo, Banksy, usa e abusa desse conceito, usando tanto o pincel quanto o spray nas ruas de Nova Iorque. O hip hop é a cultura que vem “da rua”, “do gueto”, do subúrbio, enfim, para se manifestar nos grandes centros metropolitanos e ser absorvida por todos; o que não impede que seus elementos sofram movimentos constantes de “pasteurização” até chegarem à massa – ou de “intelectualização” para que  sejam aceitos pela crítica e nas altas esferas eruditas – consequências de sua absorção ou “exigências” para tanto.
 
Obra de Banksy
 
Grafite d'Osgemeos.
 
Grafite d'Osgemeos.
 
 
Assim, mais uma vez, como qualquer fenômeno artístico, as artes se transformam, na medida em que seus públicos também se diversificam. Manifestações periféricas, tidas como marginais, ou ainda outras, tratadas durante décadas como “cultura menor” ou mero entretenimento devido a sua relação com a cultura de massa, repentinamente, passam a ser “aceitas”, “permitidas”. As consequências disso são importantes para a evolução dos fenômenos artísticos, para a formação de um público que possa, enfim, sustentar, literalmente, os autores para que estes continuem investindo na criação. O preço a se pagar por isso é, de fato – sem querer ser redundante, mas já o sendo –, o preço: a noção de valor que vem acompanhada disso, seja ela estética ou de mercado.

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