segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A Hora e a Vez dos Quadrinhos Nacionais

Para quem ainda acha que histórias em quadrinhos tem a ver apenas com heróis, super-heróis e seus dilemas, resta uma triste constatação: esses não lêem quadrinhos há muitos anos; ou talvez nunca pararam para perceber que este é apenas mais um canal de expressão artística que, como tal, guarda os mais variados temas, desde dramas surreais do universo de seres super poderosos, passando por personagens que talvez só tenham tanta graça por serem, justamente, iguais a nós.

No ambiente dos super-heróis, a literatura em quadrinhos passou por uma profunda revisão, principalmente através dos roteiros de Allan Moore (co-criador de Watchmen, V de Vingança, A Liga Extraordinária, entre outros) e da violência despudorada de Frank Miller (o homem que reinventou o Batman em O Cavaleiro das Trevas, o Demolidor em Demolidor - O Homem sem Medo, além de observar como nasce o heroísmo em 300 de Esparta e revisitar o noir na série Sin City); através do inigualável universo onírico de Neil Gaiman (de Sandman), os quadrinhos chegaram a obter status de arte de vanguarda; por outro lado, muitos autores percebam que os gibis também poderiam falar sobre o "nada", a vida comum e as pequenas ocorrências do prosaico, como nas obras de Harvey Pekar e Robert Crumb. Will Eisner, por exemplo, é o sinônimo dessa amplitude temática do gênero em questão: é a principal referência desse meio, criou o conceito de "romance gráfico" (graphic novel), deu as bases para a arte sequencial ser vista como algo original, teorizou sobre ela, obteve imenso sucesso com o herói Spirit, mas resolveu também explorar a miséria humana e a luta pela sobrevivência em espaços totalmente verossímeis, como na "trilogia do Contrato com Deus"; foi um contador de histórias sem limites, que falou sobre quase tudo e foi pioneiro na adaptação de clássicos da literatura para HQ'S. Além disso tudo, a literatura em quadrinhos continua produzindo obras-primas, em todos os estilos acima e dialogando com aspectos centrais da sociedade, como Maus, de Art Spiegelman, sobre o Nazismo (que ganhou o prêmio Pulitzer, considerado o maior status literário que uma obra pode alcançar internacionalmente), e Persépolis, de Marjane Satrapi, um painel da geopolítica do Irã durante a segunda metade do século XX sob o olhar de uma garota. Nessas diferentes vertentes, bebendo em todas essas fontes, estão alguns dos maiores talentos artísticos brasileiros do novo século, alguns deles trabalhando arduamente há mais de uma década a fim de consolidar o seu trabalho, garimpando visibilidade com algumas dificuldades, culpa de um preconceito ridículo para com o universo dessas histórias, principalmente no Brasil, onde a maior referência conhecida desse segmento são os personagens inesquecíveis de Maurício de Souza (Mônica, Cebolinha, entre outros que povoam o imaginário nacional).

Alguns desses grandes novos talentos fazem parte de um time que está renovando o gênero no país, mais pelo ato de produzir em si do que propriamente de vender, afinal, no Brasil, esse é um mercado difícil e visto de forma equivocada, ao contrário dos Estados Unidos, onde a maioria desses artistas produz, vende melhor, tem reconhecimento e ganha prêmios. Os gêmeos Gabriel Bá e Fábio Moon, além do gaúcho Rafael Grampá e de Rafael Coutinho, são representantes dessa virada. Os quatro estiveram na Festa Literária de Paraty deste ano, provando que, mais do que dialogar como literatura, as HQ'S representam um fazer artístico próprio e que deve ser respeitado como qualquer outro; guarda empenho de seus criadores, que querem dar conteúdo e originalidade a um gênero que tem muito disso (muito mesmo, espantosamente) e que não deve mais ser visto apenas como "tara nerd".

Fábio Moon e Gabriel Bá já são figuras carimbadas no circuito alternativo e guardam como principais marcas autorais as histórias sobre a vida cotidiana, amores, desamores, amizade e a condição de ser um cidadão comum, principalmente jovem, numa grande cidade. Além disso, desenham para os mais variados autores, principalmente para o mercado editorial norte-americano. Bá, por exemplo, ilustrou recentemente The Umbrella Academy, série escrita por Gerard Way, também vocalista da banda My Chemical Romance. Ao adaptarem o clássico conto de Machado de Assis, O Alienista, os irmãos ganharam o prêmio Jabuti, fato que lhes deu notoriedade e provavelmente tenha sido o "passaporte" dos rapazes para a Festa de Paraty deste ano. Juntamente com Rafael Grampá, mais os estrangeiros Vasilis Lolos e Becky Cloonan, receberam o Eisner Awards, o "Oscar" dos quadrinhos, por 5. Grampá, por sua vez, figura num estilo bem diferente dos irmãos, lançou recentemente a sensacional Mesmo Delivery, que ganhou em 2009 o principal prêmio de qudrinhos do Brasil, o HQ Mix, e promete encabeçar, definitivamente, o time principal dos criadores internacionais com a ainda em produção Furry Water and the Sons of the Insurrection, escrita pelo também brasileiro Daniel Pelizzari. Aliás, há um dado interessante aqui: tanto Pelizzari com Furry Water, quanto Daniel Galera com a também inédita Cachalote (produzida em parceria com Rafael Coutinho) são autores que fixaram seus nomes como escritores e agora migram para esse outro espaço literário - demonstração cabal de que o envolvimento com a arte não tem barreiras para aqueles que, simplesmente, querem contar boas histórias.

Estivemos lá na FLIP na mesa de discussão em que as HQ'S foram o centro das atenções e presenciamos uma sensacional spoken comic, uma pequena demonstração de algumas obras por seus próprios autores. Se fossem apenas livros, seriam lidos trechos, aqui, no entanto, foi preciso ver para conhecer.



TRECHO DE MESMO DELIVERY, DE RAFAEL GRAMPÁ, POR GRAMPÁ E RAFAEL COUTINHO



TRECHO DA AINDA INÉDITA CACHALOTE, DE RAFAEL COUTINHO E DANIEL GALERA




O elemento central nesta discussão sobre quadrinhos ser ou não literatura está no que consiste, de fato, o conceito de qualidade. Como já foi dito aqui, ser ou não ser literatura ou arte "de verdade" não é o foco da questão. O maior tabu que se coloca é que, em sua origem, e até hoje, os quadrinhos são um gênero de massa, consumido em demasia, uma indústria que gera muito dinheiro, mas que, na verdade, tem seus nichos. Assim como há a HQ mais comercial, há também aquela mais experimental ou intimista que rejeita a ideia de vender por vender; há autores que transitam nesses dois meios sabendo dosar essa distinção na identidade de uma obra mais autoral e outra que garante seu sustento - como é o caso dos gêmeos Moon e Bá; como em qualquer tipo de arte, há, aqui, aquela voltada ao grande público e a dos núcleos mais fiéis; há as histórias de boa qualidade e também as ruins, uma definição ambígua, sim, mas que nunca, em nenhum tipo de manifestação, pode ser definida pelo fato de ser popular ou mais restrita.

Seja qual for a temática, este é um gênero que mistura o sabor das letras com as artes gráficas sempre de uma forma única e, muitas vezes, despojada (no bom sentido), e que por isso talvez apaixone tanto. O que prova, mais do que nunca, como sensibilidade e reflexão, na arte, podem ser saberes intrínsecos à diversão. E, de uma vez por todas, chega dessa história: a literatura em quadrinhos também amadurece junto com seu público, uma vez que, definitivamente, não é coisa (só) de criança. Em alguns casos, é justamente o contrário: é necessária muita bagagem cultural para compreendê-la e uma percepção aguda de seus aspectos mais subjetivos.



*Durante o período em que estivemos na FLIP 2009, as HQ'S foram a nossa atração principal. Para nossa surpresa, foi por causa da presença delas que aparecemos no "Jornal Hoje" e no "Folha Online":
-CLIQUE AQUI PARA VER A REPORTAGEM (RUIM, EM TOM BASTANTE INFANTIL) DO "JORNAL HOJE" EM QUE A CAROL FALA E O VINICIUS APARECE DE CAMISETA DO GRÊMIO!
-CLIQUE AQUI PARA VER A (BOA) MATÉRIA DO "FOLHA ONLINE"! (NESSA SÓ APARECEMOS DE RELANCE)

*Recentemente, os quadrinhos fizeram parte de um acalorado debate pedagógico, uma vez que a adoção de algumas obras de Will Eisner em escolas foi questionada em âmbito federal e regional. Há argumentos dos mais variados, mas posicionamo-nos TOTALMENTE A FAVOR DA PERMANÊNCIA DESSAS HQ'S. Mais do que nunca, dialogar com o gênero em si na escola, sem preconceitos, seria já uma grande vitória. Além disso, a discussão sobre os temas presentes nas obras parece ser de um moralismo atroz por parte das autoridades. É claro que é necessário observar as faixas etárias dos leitores, mas negligenciar o conhecimento desses livros A TODOS é um absurdo.
- LINK PARA MATÉRIA DE ZERO HORA NO CLIC RBS!
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Em defesa de Eisner: links para ARTIGO DO CINEASTA JORGE FURTADO e TEXTO DE DIANA CORSO

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