segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

A Realidade Ficcionalizada ou a Ficcionalização do Real











A seca e seus retirantes constituem uma temática fortemenete desenvolvida pelo momento literário denominado Romance de 30. Alguns autores que produziram nessa época utilizaram a temática social como ponto de partida para suas criações literárias. Entre eles, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos deram ênfase ao sofrimento do retirante e ilustraram suas narrativas com seu universo árido, imerso em dor. Graciliano, em "Vidas Secas", deu ao retirante caráter humano, por meio de um narrador em terceira pessoa que mobiliza seu foco narrativo, colocando-o ao lado de cada personagem da família de Fabiano. Se até então o sertanejo surgia, com maior fôlego, como um tipo, a personagem Fabiano demonstra-nos que, apesar de sua “linguagem cantada, monossilábica e gutural”, o sertanejo observava o mundo e, mais que isso, experenciava-o.

Nesta postagem, sugiro a fruição de um conjunto de produções artísticas que observam a seca suas personagens. Podemos começar com um trecho de Graciliano, no qual fica evidenciado o foco narrativo e a percepção de mundo da personagem Fabiano que se sente emparedado, asfixiado, em meio a uma multidão que não o percebe:


“A multidão apertava-o mais que a roupa, embaraçava-o. De perneiras, gibão e guarda-peito, andava metido numa caixa, como tatu, mas saltava no lombo de um bicho e voava na catinga. Agora não podia virar-se: mãos e braços roçavam-lhe o corpo. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. A sensação que experimentava não diferia muito da que tinha ao ser preso. Era como se as mãos e os braços da multidão fossem agarrá-lo, subjugá-lo, espremê-lo num canto de parede. Olhou as caras em redor. Evidentemente as criaturas que se juntavam ali não o viam, mas Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se em questões e acabar mal a noite”, pág. 75.

Eu não poderia deixar de citar o magistral vídeo clipe “Segue o Seco”, de Marisa Monte, dirigido por Cláudio Torres e José Henrique Fonseca, com genial fotografia de Breno Silveira, no qual temos a presença de três palavras centrais para o universo sertanejo: chuva, gado e seca. As imagens são belíssimas e trazem a sugestão do aspecto físico de diferentes “Fabianos”.



Para percebermos a intensidade do diálogo elaborado a partir da temática, sugiro a leitura de Leandro Gomes de Barros, cordelista que escreveu “A Seca do Ceará”:

“Seca as terras as folhas caem,
Morre o gado sai o povo,
O vento varre a campina,
Rebenta a seca de novo;
Cinco, seis mil emigrantes
Flagelados retirantes
Vagam mendigando o pão,
Acabam-se os animais
Ficando limpo os currais
Onde houve a criação.
(...)
Vê-se uma mãe cadavérica
Que já não pode falar,
Estreitando o filho ao peito
Sem o poder consolar
Lança-lhe um olhar materno
Soluça implora ao Eterno
Invoca da Virgem o nome
Ela débil triste e louca
Apenas beija-lhe a boca

E ambos morrem de fome”.



“Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente pra lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos”,
"Vidas Secas", pág. 128.

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