terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Modernismo Brasileiro

Quando falamos em Modernismo, na Literatura, vale lembrar que, didaticamente, fazemos uma divisão: pensamos o movimento modernista como uma marca entre o Parnasianismo e a nossa modernidade literária. Ele surge como uma proposta em oposição aos ideais estéticos do Parnasianismo, ao mesmo tempo que anuncia pressupostos da poesia de 30 e do romance de 30. Devemos, portanto, observar que o Modernismo, em si, é a concretização, ou formalização, de ideais estéticos livres, ou seja, que priorizam a forma livre e o conteúdo prosaico.

A Semana de Arte Moderna, que, na verdade, resumiu-se a três dias, dá início a esse posicionamento literário e é chamada, muitas vezes, de Primeira Fase Modernista. Após ela, com as marcas essenciais, na literatura, de Oswald de Andrade e de Mário de Andrade, chegamos à maturidade literária.

Adentramos, pois, o que alguns manuais de literatura chamam de Segunda Fase Modernisa, momento em que temos uma forte produção de prosa e de poesia, sem, no entanto, haver uma unidade temática ou estética. Há, sem dúvida, um aspecto convergente: a busca da liberdade formal.

Na poesia, portanto, temos Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles (a primeira mulher a entrar no cânone), Vinicius de Moraes, Mário Quintana, Manuel Bandeira, Murilo Mendes. No romance, o denominado Romance de 30, busca marcas da verossimilhança e, por isso, é chamado, também, de neorealismo. Os autores são diversos e não possuem uma proposta unificada. Entre eles, temos Graciliano Ramos, Raquel de Queirós, Dyonélio Machado, Erico Verissimo, Jorge Amado...

Outro aspecto que vale lembrar são os manifestos, relacionados às propostas da Semana de Arte Moderna. Eles podem ser considerados um gênero textual, no qual os artistas, tanto na Europa (Vanguardas Européias), quanto no Brasil, usaram para anunciar seus ideais estéticos. Abaixo, temos alguns excertos:

MANIFESTO DA POESIA PAU-BRASIL, de Oswald de Andrade (1924)
“A poesia existe nos fatos. Os casebres de afetação e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos (...) Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil a poesia. A poesia Pau-Brasil. Ágil e Cândida. Como uma criança (...) A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos (..) Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a poesia Pau-Brasil, de exportação (...) O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese, contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento teórico, contra a cópia, pela invenção e pela surpresa. Uma nova perspectiva”.


MANIFESTO ANTROPOFÁGICO, de Oswald de Andrade (1928)
“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente (...) Tupi or not tup that is the question (...) Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago (...) Contra todos os importadores de consciência enlata (...) Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o (...) Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade (...) Contra a memória fonte do costume. A experiência pessoal e renovada”.


PREFÁCIO INTERESSANTÍSSIMO, de Mário de Andrade (1921)

“Leitor, está fundado o Desvairismo. Este prefácio, apesar de interessante, inútil (...) Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu insconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio (...) Um pouco de teoria? Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são versos inteiros, sem prejuízo de mdeir tantas sílabas, com acentuação determinada (...) Minhas reivindicações? Liberdade (...) Bilac representa uma fase destrutiva da poesia; porque toda perfeição em arte significa destruição (...) O nosso primitivismo representa uma nova fase construtiva”.



O Modernismo




Rodrigo Gonçalves Beauclair
Doutorando em História Cultural pela UFRJ


“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos,de todos os coletivismos.De todas as religiões. De todos os tratados de paz.”
Oswald de Andrade

As frases acima compõem o Manifesto Antropófago publicado na Revista de Antropofagia em maio de 1928. Nestas supracitadas frases reverberam a essência de um movimento que no Brasil, iniciado com a Semana de Arte Moderna de 1922, representava uma centelha de expressão do que se chamava de Modernismo, movimento artístico-cultural que mobilizou intelectuais e artistas, tanto na Europa como na América Latina.
O contexto histórico de sua manifestação é marcado pelas transformações tecnológicas e científicas na Europa no correr das primeiras décadas do século XX. Essas mudanças impulsionadas pelo desenvolvimento do capitalismo que entra em crise, dando início à Primeira Guerra Mundial (1914-1918), encerram a belle époque. No seu lastro eclode a Segunda Guerra (1939-1945), que nos seus anos intermediários desperta o anseio de interpretar e expressar a realidade de forma diferente.
A pujança dessas transformações nas artes visuais era manifestada pelos diversos movimentos que emergiam e constituíam-se na Europa como as vanguardas- o fovismo, o expressionismo, o purismo e o construtivismo. Junto a esses surgiram três que são epítetos dessa atmosfera profícua de criatividade e originalidade estética: o futurismo, liderado pelo italiano Marinetti, exaltava a velocidade e a máquina; o cubismo, proveniente da pintura, buscava fracionar a realidade, remontando-a a seguir através de formas geométricas superpostas; o dadaísmo, liderado por Tristan Tzara, negava a lógica, a coerência e a cultura, como meio de oposição à guerra. O termo dada, que não significa nada, era aplicado à arte como afirmação do não reconhecimento de nenhuma teoria e declarava a morte da beleza; o surrealismo, lançado no ano de 1924, por André Breton, com o Manifesto do Surrealismo, pregava o apego à fantasia, ao sonho e à loucura. Utilizava também como meio de expressão, a escrita automática provocada pelo impulso do artista, que registra tudo o que lhe vem à mente, despreocupado com a lógica.
Na América Latina essa onda plural e multicromada representou uma vigorosa corrente de renovação cultural e estética. Os diferentes grupos, formados por intelectuais e artistas, muitos vindos da Europa, expressaram os conceitos e ideais do modernismo, que se constituía no conhecimento e debates das realidades nacionais através de manifestos, revistas, exposições e conferências. Entre as revistas, as mais significativas foram:
Klaxon (1922) e a Revista de Antropofagia (1928), em São Paulo; Actual e El Machete (1924), no México; Martín Fierro (1924), em Buenos Aires, e a Amauta (1926), no Peru. Esse caleidoscópio de manifestações produziu um intenso movimento de busca das raízes e representação dos elementos sociais, culturais e históricos constitutivos do material a ser empregado no desenvolvimento das manifestações estéticas de cunho nacionalista.
No Brasil o modernismo atravessou três fases distintas, caracterizadas por peculiaridades históricas e estéticas: a primeira fase (1922-1930), a segunda fase (1930-1945) e a terceira fase (pós 1945), refletindo os movimentos das conjunturas sociais, econômicas e políticas, tanto interna quanto externa.
A primeira manifestação pública dos modernistas brasileiros foi na
Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, onde foram realizadas exposições, recitais de poesia, concertos e conferências, que abarcavam temas que evocavam Villa-Lobos, na música, Brecheret na escultura e Di Cavalcanti, Anita Malfatti e outros na pintura. O objetivo manifestado na Semana era o de se opor ao Naturalismo, Parnasianismo e Simbolismo que ainda estavam presente.
Alguns acontecimentos, anteriores a 1922, preparam a trajetória do Modernismo; fatos, especificamente, ligados à estética renovadora, se multiplicam. Em 1912,
Oswald de Andrade traz da Europa a novidade futurista; em 1913, o pintor Lasar Segall faz uma exposição negando a pintura acadêmica. Em 1917, a exposição dos quadros de Anita Malfatti, em São Paulo, destacando a pintura expressionista, assimilada na Europa coloca, de um lado, os que apóiam o novo e, de outro, os conservadores.
No ano de realização da Semana de Arte Moderna é fundada a
Revista Klaxon, uma revista mensal de arte moderna, de perfil futurista e anunciadora de uma arte de caráter internacional e inspirada na industrialização. Posteriormente, é lançado o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, que usando a expressão “a selva e a escola”, abordava de maneira nova o Brasil a partir de sua cultura mulata e sua atmosfera tropical. Esses elementos evidenciavam o contraste existente com a indústria moderna. A consideração desses elementos culturais e estéticos representava uma mudança de consciência dos poetas e artistas ricos e bem-educados, itinerantes na atmosfera européia e nos seus modos e padrões. Contudo, essa consciência se alarga em 1928 com o Manifesto Antropófago, também de Oswald de Andrade, que nos convidava a devorar nosso colonizador, guardando em seu cerne as contradições do brasileiro: moderno∕primitivo, indústria∕indolência, centralismo∕regionalismo, etc.. É importante destacar o papel de Tarsila de Amaral na pintura neste momento, ilustrando no manifesto supracitado a figura do Abaporu, ícone de sua busca pela expressão das realidades que estavam contidas no que se estavam repensando como Brasil.
A segunda fase do movimento modernista no Brasil, estritamente ligado ao desenvolvimento da geração de 1922, apresenta com evidência o regionalismo, expressado fortemente por meio da poesia e da prosa, mas não desconectado com a conturbada conjuntura internacional. São representantes dessa fase:
Mário de Andrade, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes, entre outros, na poesia; e José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e Érico Veríssimo, na prosa.
Nos anos posteriores a 1945, no cenário cultural e artístico do Brasil, começa um contra-movimento aos ideais do modernismo disseminados pela geração de 1922, tanto na poesia quanto na prosa.
Na poesia, o concretismo, a poesia-práxis, o poema-processo, o poema-social, a poesia marginal e os músicos-poeta pregam o fim dos elementos da poesia tradicional, o verso e a rima, buscando a exploração dom espaço em branco com a decomposição e relação das palavras. Destacam-se nesse grupo
João Cabral de Melo Neto e Cassiano Ricardo. Na prosa, prioriza-se o realismo fantástico e o romance de reportagem, discutindo os conflitos entre o homem e a modernidade. No grupo, destaca-se Clarice Lispector, Guimarães Rosa, como também Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Rubem Braga, entre outros.
O modernismo, como um movimento de longa duração de discussão, crítica e renovação cultural e artística, delineou e difundiu realidades brasileiras e seus personagens dispostos na imensa área geográfica que se denomina Brasil, não significando somente um projeto modernizador, mas construtor de uma possível identidade nacional brasileira.

Revisão!

Nosso ensino regular de literatura, principalmente no Ensino Médio, prioriza a historiografia. Para aqueles que lecionam em escolas ou em cursinhos, isso não é novidade - tampouco para os alunos, muitos dos quais, talvez, não saibam exatamente o significado de historiografia, mas sabem que foram "convidados" a ler Os Lusíadas e O Guarani.
Não sou contra esse sistema de ensino, pois sei que a noção cronológica é essencial. Entretanto, se nosso objetivo como professores é a formação de leitores, a famosa historiografia pode ser um problema. Quase intuitivamente, sabemos que no Ensino Fundamental, principalmente até a quinta série, a leitura tem um tom positivo - ir à biblioteca e assistir à contação de histórias é uma festa. Crescemos, chegamos ao intervalo entre a infância e a adolescência: sétima e oitava séries. Nesse momento, desfilam as adaptações e algumas obras autorais. Fato: nem sempre essa vivência é traumática.
No Ensino Médio, no entanto, o horzionte-de-expectativa-vestibular anuncia seus contornos e os períodos literários desfilam. Sei que no primeiro ano do Ensino Médio há um trabalho de maior fôlego com os gêneros. Infelizmente, ele não é suficiente para demonstrar aos alunos que literatura não é sinônimo de José de Alencar.
Sem dúvida, Alencarzinho e suas personagens são importantíssimos para pensarmos a contrução da nossa literatura. Essa reflexão é explícita para mim, aluna de LETRAS, e não para um aluno do Ensino Médio. Para os jovens que vão diariamente para a sala de aula colar os trasieros em cadeiras, a literatura deve, acredito, surgir como sinônimo de autores contemporâneos.
Há uma grande discussão transapassando essas palavras: letramento e letramento literário. Primeiramente, capacitar o estudante a ler e a escrever para, com isso (como diria o Professor Garcez) fazer a vida. O letramento literário (teoria para ser lida nestas férias!) indica que devemos ter a mesma preocupação com a leitura da literatura. Ler o jornal diariamente é diferente de ler um romance e um conjunto de poesias. Inevitavelmente, o processo de produção de sentidos será outro.
A escola, ambiente problemático, deve, nas disciplinas de português e de literatura, proporcionar essas vivências de leitura para que, posteriormente, o aluno decida se quer ser um leitor lietarário ou não.
Hoje, enquanto ministrava uma aula de redação, dicutíamos um texto maravilhoso, "Ladrões de Livros", de Ruy Tapioca, que trabalham, justamente, a presença, ou melhor, a ausência, da leitura no Brasil. Um dos meus alunos afirmou algo parecido com isto: o estudante deve ter a capacidade de leitura desenvolvidada para que, futuramente, ele possa refutar o objeto artístico literatura do mesmo modo que ele diria não a um filme ou a uma mostra de arte contemporânea.
A ideia é genial. Façamos o esforço para formar leitores, mas não venhamos a condenar aqueles que optam pela tv.
Toda essa conversa, talvez chata, para dizer que aqui está um arquivo historiográfico de revisão - do Parnasianimo ao Modernismo.


Para aqueles que ficaram curiosos, o texto do Ruy Tapioca, retirado do Jornal Rascunho:
LADRÕES DE LIVROS

A discussão, intelectualizada, rolava animada na mesa de bar, sobre tema controverso - Por que os brasileiros leem tão pouco? - quando o aparelho de TV, preso à parede, anunciara: "Está chegando a hora de você espiar! Você vai poder novamente espiar!", convocava o âncora do reality show de maior audiência da televisão brasileira, do Pico da Neblina à Lagoa dos Patos.
Um dos frequentadores da mesa aproveitara a deixa da chamada da TV: "Eis aí um dos ladrões de livros no Brasil: esse pastiche orwelliano, campeão de audiência da mídia eletrônica tupiniquim, nada mais é que um simulacro do mais abjeto e pretenso neonaturalismo! Por que essa excrescência faz tanto sucesso aqui enquanto a literatura é um permanente e retumbante fracasso?", escarnecera vibrando um gesto grosseiro para a TV.
O programa televisivo exibia a intimidade de um grupo de participantes anônimos, confinados numa casa-estúdio, convidados a disputar gordo prêmio em dinheiro, com a única obrigação de trocarem livremente entre si, com cínica espontaneidade, toda sorte de abobrinhas, futilidades, neuras, delações, fuxicos, intrigas pessoais e vazios de espírito, além de filosofias existenciais - de profundidade equivalente à de um lago onde formiguinhas atravessariam com água pelas canelas, como escreveria o saudoso Nelson Rodrigues.
As câmaras de TV do programa - com serventia de buracos de fechadura eletrônicos - estimulavam o acampanar indiscreto dos telespectadores.
"Qual o valor cultural que um lixo como esse agrega?", insistira o crítico do programa.
O antropólogo da hora, sentado ao lado, antecipara-se na resposta: "O programa é um campeonato de perde-ganha, espécie de torneio mata-mata: visa a eliminar o concorrente e salvar a própria pele, por meio da votação dos telespectadores. Trata-se de torneio lúdico onde os participantes geralmente exibem indigência cultural e demonstram espontânea mediocridade, perfis e ingredientes que o cidadão médio brasileiro se compraz em observar e julgar".
O crítico do programa insistira: "Por que o brasileiro prefere esse tipo de lazer à leitura de um livro?"
O sociólogo de bar, do outro lado da mesa, interviera: "Simples: somos, em tese, um povo mais atraído por imagens que pela escrita, mais seduzido pelo barulho que pelo silêncio, mais devotado à galhofa que à sensatez, mais inclinado ao impulso que à reflexão. Nesse quadro, não há lugar para a literatura", arrematara.
O sociólogo de momento refutara: "Generalizações exageradas, ponderáveis como insights, mas desprovidas de constatação científica: o problema do baixo índice de leitura no Brasil, e da desconsideração do livro como instrumento de lazer, tem origem multidisciplinar!"
"Explique-se!", exigira o jurista do grupo.
"Existem fatores históricos, econômicos, sociais, culturais, mercadológicos, e até climatológicos, para justificá-los. Os colonizadores do país só permitiram a criação da primeira escola no Brasil, última nação sul-americana a criar estabelecimentos de ensino e bibliotecas públicas, após 300 anos de seu descobrimento, mesmo assim porque aqui aportou a família real, escorraçada pelas tropas de Napoleão, a quem os brasileiros deveriam erigir uma estátua, pelo providencial e humilhante passa-fora infligido à corte portuguesa! Por essa razão histórica, livro e literatura sempre tiveram por aqui ressaibo de coisa proibida, inacessível, inconveniente..."
O economista de plantão interviera: "Prefiro a explicação econômica: livro no Brasil é caro, o povo tem poder aquisitivo reduzido, existem dezenas de milhões de analfabetos broncos e funcionais no país, gente para quem a leitura desperta a mesma excitação que a experimentada por um eunuco quando assiste ao rebolado de uma odalisca", motejou.
"Razões climatológicas?", indagara o jurista, curioso.
"Sim, é razoável ponderar que os calores que aqui fazem não convidam à leitura, como acontece nos países de climas frios. Somos mais afeitos à prática de lazer ao ar livre, passeios em shoppings refrigerados, bate-papos em choperias, estádios, praias, piscinas e quejandos".
O economista recalcitrara: "Somos um país esquizofrênico: temos mais editoras que livrarias, mais editoras que bibliotecas! Não há nada que o brasileiro ache mais enfadonho que uma biblioteca: alega que lá não se pode conversar, tem que se suportar um incômodo silêncio, não se permite atender celular! Batucar nas mesas, nem pensar!"
O jurista resolvera meter a colher na discussão: "De fato, leitura exige isolamento, ausência de barulho, não se pode ter conversa em volta. Impossível manter a concentração na leitura comendo um pedaço de pizza ou assistindo TV. Espertamente, os donos de cinemas no Brasil, para se ajustar aos hábitos da população, adaptaram as poltronas das salas de exibição para funcionarem como mesinhas de lanchonete: durante a exibição do filme os espectadores consomem baldes de pipocas, a produzirem antropofágicos ruídos! Avisos nas telas pedem, debalde, que os espectadores desliguem seus celulares, sem êxito: durante a projeção ouve-se toda sorte de musiquetas de chamadas de celulares: La traviata, Mamãe eu quero, Hino do Flamengo, Tô nem aí, Levantou poeira, e quejandos. Já ouvi chamada de celular que imita o som da descarga de uma privada! Somos um país de pândegos, como pode haver lugar para literatura?".
O pedagogo da hora, até então em silêncio, resolvera intervir: "A falha está na escola, no sistema de ensino adotado: exige-se dos alunos leitura obrigatória de romances nacionais. São compelidos a ler Machado, Macedo, Raul Pompéia, José de Alencar. Resultado: tomam ojeriza pelo livro, não há quem não se revolte com tamanha tortura pedagógica: a literatura deve despertar prazer, não pode ser imposta como obrigação".
O crítico do reality show insistira: "Mas por que então o brasileiro gosta tanto de novela de TV? Aquilo também não é literatura?".
O antropólogo de roda de chope antecipara-se: "Novela de TV não dá trabalho para ser compreendida: a trama já vem prontinha, suavemente explicada com som e imagem, sem necessidade de leitura de legendas. Já vem dividida em suaves e preguiçosos capítulos diários, entremeados por intervalos comerciais de xampus, cervejas, eletrodomésticos e planos de saúde, que têm o condão de distrair despertando interesse de consumo. A novela de TV tem outras vantagens em relação ao livro: você pode assisti-la enroscado numa companhia. Se o capítulo estiver muito chato, pode dispensá-lo para fazer outra coisa, sem prejuízo do enredo, que é formado por tantas histórias paralelas que a eventual perda de um ou dois capítulos não representa problema, diferentemente de um romance: se você não entendeu, é obrigado a voltar, reler, isso dá trabalho...".
O jurista aduzira outra vantagem para as novelas televisivas: "O telespectador sabe que pode interferir no curso de uma novela, no destino dos personagens, porque o autor a escreve ao sabor das pesquisas de audiência: se o personagem não agradou, providencia sem embaraço a morte do infeliz; se a empregada doméstica está com dificuldades para conquistar o patrão rico, faz-se um pirlimpimpim tupiniquim, e pronto: o homem apaixona-se, sem detença, pela sedutora serviçal. Nas novelas de TV brasileiras tudo é permitido, nada é impossível: rico se apaixona por pobre, desemprego não existe, negro não sofre preconceito racial, mãe sempre encontra filho desaparecido, a justiça é ágil, a polícia é eficiente, o político é honesto, adolescente se apaixona por coroa, tem até argentino que sofre de complexo de inferioridade! Já com a literatura não se pode interferir na história: para ser compreendida, precisa ser lida, em recolhido silêncio, exigindo constantes reflexões para construção do imaginário".
Um dos participantes do grupo atacara de Sêneca, com ar de enfado e pedante latinório: "Otium sine litteris mors est et vivi hominis sepultura: o lazer sem as belas-letras é como a morte e a sepultura do homem vivo. As áreas mais nobres do cérebro humano só se expandem com a leitura: não há hipótese de alguém adquirir conhecimentos fundamentais, ou sólida formação educacional, sem interesse por literatura. Sêneca tinha razão: um homem que não lê é uma espécie de aleijão social, meio-cidadão, um deficiente cerebral".
O gozador do grupo olhara o relógio e disparara: "São horas, vamos pedir a conta. Razão tinha Bacon quando escreveu que os amigos são ladrões do tempo: roubam o tempo da gente! Poderíamos estar todos agora a desfrutar da leitura de um bom livro, em vez de ficar aqui destilando filosofias de botequim. Garçom! A saideira!".