segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

"O sem-vergonhista", de Cláudia Laitano

Dizem que em Paris até o bilheteiro do metrô sabe quem é Tartufo – personagem criado por Molière muito antes de as cabeças rolarem durante a Revolução Francesa. Mesmo quem nunca assistiu a uma encenação da peça ou teve a oportunidade de ler o texto original da comédia editado em livro sabe do que estão falando quando, em uma conversa, alguém compara uma personalidade qualquer dos dias de hoje a um dos mais célebres pilantras da literatura francesa. Esse cultivado bilheteiro de metrô, mesmo simbólico ou talvez já aposentado e substituído no emprego por um jovem descendente de imigrantes, serve para ilustrar a força da cultura letrada francesa – capaz de transformar um personagem da ficção em patrimônio nacional, quase tão assimilado ao cotidiano das pessoas comuns quanto a baguete e o vinho tinto.

No Brasil, personagens de ficção integrados ao imaginário nacional são tão raros quanto metrôs. Emília, Gabriela, Escrava Isaura, e mais recentemente Capitu, todas contaram com o apoio da TV para ampliar sua restrita fama literária. Capitão Rodrigo ficou conhecido no resto do Brasil graças aos bigodes de Tarcísio Meira. Dona Flor tem o rosto, e as outras partes, de Sônia Braga.

O único personagem literário que realmente ficou famoso no Brasil, mesmo antes do cinema e da televisão, talvez seja Jeca Tatu, criado por Monteiro Lobato no começo do século 20 para esculhambar com o caipira idealizado da literatura romântica do século anterior: “Este funesto parasita da terra é o caboclo, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização...”. A repercussão e a polêmica em torno de Jeca Tatu foram imensas, e Monteiro Lobato, em meio a uma grande campanha de saneamento, acabou maneirando um pouco nas críticas, atribuindo boa parte das mazelas de Jeca a falhas da saúde pública: “Eu ignorava que eras assim, meu caro Jeca, por motivo de doenças tremendas. Está provado que tens no sangue e nas tripas todo um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte”. Mazzaropi emprestou seu rosto para o caipira mais famoso do Brasil em filmes como Jeca Tatu (1959) e A Tristeza do Jeca (1961), mas o personagem já era famoso antes dele e ainda hoje faz parte do vocabulário popular (“jeca” e “jeca-tatu” são termos dicionarizados).

Do outro extremo da pirâmide social brasileira, lá onde “as doenças tremendas” não amolecem a ambição, vem outro personagem que entrou para o imaginário nacional tão naturalmente quanto o Jeca Tatu. Odorico Paraguaçu era o personagem principal de uma peça de Dias Gomes escrita em 1962 e levada ao palco pela primeira vez em 1969. A fama do personagem, no entanto, é devida à novela O Bem-Amado (1972) e ao talento do ator Paulo Gracindo para dar vida a expressões como “talqualmente”, “sem-vergonhista”, “inescrupulento” e ao clássico “vamos colocar de lado os entretantos e partir direto para os finalmentes”.

Pois esse personagem que também merecia verbete em dicionário está prestes a ressuscitar pela segunda vez (a primeira foi em um seriado nos anos 80), em um filme com Marco Nanini no papel principal e estreia prevista para setembro. Quarenta anos depois de sua estreia no palco, o personagem não parece ter perdido sua atualidade. Com sua deslavada falta de caratismo, Odorico virou o símbolo de um tipo de político que, como os habitantes de Sucupira, simplesmente se recusam a morrer.

Extraído de Zero Hora, 14 de Fevereiro de 2009, página 3.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Tempo de mar... E de poesia.

Como no amor,
morre no mar
quem sabe nadar.

Marlon de Almeida

O tórrido calor da cidade grande nos faz por vezes esquecer o poder inspirador da brisa marítima e do descanso que nos proporciona o ambiente litorâneo. Ou, pelo contrário, ao invés de nos concentrarmos excessivamente no desconforto proporcionado por essas monstruosas temperaturas na metópole, ficamos, na verdade, descontroladamente atraídos por uma ida à praia para descansar. Uma boa oportunidade de relaxar nesses dias quentes, na cidade, no litoral, ou seja lá onde for, é ler um bom livro, e folhar as páginas e os poemas de "Prosa do Mar", de Marlon de Almeida, nos transporta diretamente para esse recolhimento das boas praias e do universo mítico dos pescadores mais tradicionais.
Há um aroma delicioso de maresia na leitura dos poemas de Marlon, que atinge uma maturidade literária impressionante com este livro, lançado em Dezembro último pela editora 7 Letras, que segue os passos de uma obra que já vem sendo sedimentada desde meados dos anos 90. Se em "Malabares, ou O Clube dos Incomparáveis" o autor demonstrava uma total liberdade ao circular pelos ambientes urbanos mais prosaicos, aqui, neste novo momento literário, o mar e seus elementos são um desvio para outro universo ainda mais voltado à observação atenta das coisas simples, por sua vez recheadas de poesia.

"Mestre José bebe cachaça no bar:

Nunca mais vou amar.
Nunca mais vou a mar."

Marlon parece travestir-se de pescador, de "homem do mar"; sente suas dores, seus amores, mas é, fundamentalmente, um observador deste meio, de aguçadíssima sensibilidade; alguém que quer aprender com as ondas e um ritmo praieiro bem diferente do qual estamos acostumados a fazer referência: aqui há a tranqüilidade de um universo quase rural, onde tal bucolismo reflete-se em um epicurismo marinho, cheio de alegorias que, de certa forma, só terão seu ritmo modificado pela incursão na obra, por parte de seu autor, de um cordel, estilo lírico muito estudado pelo escritor durante sua carreira acadêmica e no qual tem muito o que revelar ainda.

"No tempo de antes,
sem redume ou tarrafa,
pescador desentocava cardume de olhos,
matava tainha de mão
e aguda taquara.

No tempo de não hoje,
aumentou-se o recurso da pesca,
minguou-se o pescado:

o mar em si mesmo ancorado,
como sangue morrente amanhã."


Para mim, que tive a oportunidade de ser aluno de Marlon de Almeida na adolescência – fã confesso de “Malabares” - , é uma grata surpresa poder contar com sua poesia-prosa que indico aqui sem receios de estar falando de alguém que conheço, pois seu talento está muito acima disso. Trata-se de uma ótima oportunidade para conhecer um dos grandes poetas gaúchos em, talvez, seu melhor momento, sua melhor forma, e deixar-se levar pelo ritmo da calmaria marítima de Marlon de Almeida e de sua prosa que, na beleza do mar, vira poesia, de versos com sons de ondas e gaivotas na beira da praia.


*Para adquirir "Prosa do Mar", é possível comprá-lo, em Porto Alegre, nas livrarias Palavraria (Vasco da Gama, 165) e Bamboletras (Lima e Silva, 776, loja 03) ou pelo site da editora 7 Letras (www.7letras.com.br).