terça-feira, 30 de setembro de 2008

O Basílio de Marisa

Já reparou na homenagem feita no clipe de "Amor, I love you", de Marisa Monte? Trata-se de uma referência feita a partir de uma citação colocada na canção. Declamado por Arnaldo Antunes, o trecho remete a uma das obras máximas de Eça de Queirós: "O Primo Basílio". O vídeo, dirigido por Breno Silveira (que, posteriormente, dirigiria o sucesso "Dois Filhos de Francisco" e "Era uma vez" - em cartaz no país), relê o clássico do autor português tendo os dois cantores/compositores mencionados atuando como os principais personagens desta famosa história. Ganhador de vários prêmios na época de seu lançamento, "Amor, I love you" vale-se principalmente da bela fotografia e direção de arte para recontar essa história, numa singela homenagem. Leia o livro, assista ao clipe e faça a sua comparação.

CLIQUE AQUI PARA ABRIR O VÍDEO NO YOUTUBE!

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Um aniversário - outro aniversário!

“A felicidade só é real quando compartilhada.”
Christopher McCandless
Hoje é o meu aniversário (eu, Vinicius Rodrigues, um dos colaboradores deste blog). Não que isso seja importante,mas lembremos de um poema do mestre Fernando Pessoa sobre a passagem do tempo, assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos. “Aniversário” é um texto que carrega um certo ressentimento, entretanto, trata-se de uma bela reflexão.

*

"Aniversário", de Álvaro de Campos

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Jeca Tatu: o caboclo de Monteiro Lobato.











Monteio Lobato foi uma personalidade da intelectualidade brasileira: dedicou-se à literatura infanto-juvenil (praticamente a criou), iniciou a estruturação das grandes editoras nacionais,
observou a nossa realidade e criou Jeca Tatu, um dos ícones do nosso imaginário. A
personagem apareceu, primeiramente, em um artigo de nome "Urupês" e foi agregado ao livro de contos que leva o mesmo nome, em 1918. A figura do caboclo (o
caboclismo de Lobato) surge descrita de maneira negativa. Posteriormente, em
1920, Jeca Tatu surge como imagem de uma campanha publicitária para o
laboratório Fontoura Serpe & Cia. Abaixo temos o trecho final do conto
"Urupês" e, em seguida, o texto publicitário, escrito, também, por
Lobato.

Trecho de "Urupês":
(...)
O caboclo é soturno.
Não canta senão rezas lúgrubes.
Não dança senão o cateretê aladainhado.
Não esculpe o cabo da faca, como o cabila.
Não compõe sua canção, como o felá do Egito.
No meio da natureza basílica, tão rica de formas e cores, onde os ipês floridos derramam feitiços no ambiente e a infolhescência dos cedros, às primeiras chuvas de setembro, abre a dança do angarás; onde há abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, cor, perfume, vida dionísica em escachôo permanente, o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas.
Só ele não fala, não canta, não ri, não ama.
Só ele, no meio de tanta vida, não vive...
Referêcia: LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasiliense, 1997. (1. ed. 1918).

Criação Publicitária: Jeca Tatuzinho.

I
Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia, e de vários filhinhos pálidos e tristes. Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva, mas não tinha idéia de plantar um pé de couve atrás da casa. Perto corria um ribeirão, onde ele pescava de vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo. Dava pena ver a miséria do casebre. Nem móveis, nem roupas, nem nada que significasse comodidade. Um banquinho de três pernas, umas peneiras furadas, a espingardinha de carregar pela boca, muito ordinária, e só. Todos que passavam por ali, murmuravam: - Que grandessíssimo preguiçoso!

II
Jeca Tatu era tão fraco que, quando ia lenhar, vinha com um feixinho que parecia brincadeira. E vinha arcado, como se estivesse carregando um enorme peso. - Por que não traz de uma vez um feixe grande? perguntaram-lhe um dia. Jeca Tatu cortou a barbicha rala e respondeu: - Não paga a pena. Tudo para ele não pagava a pena. Não pagava a pena consertar a casa, nem fazer uma horta, nem plantar árvores de fruta, nem remendar a roupa. Só pagava a pena beber pinga. - Por que você bebe, Jeca? diziam-lhe. - Bebo para esquecer. - Esquecer do quê? - Esquecer as desgraças da vida. E os passantes murmuravam: - Além de vadio, bêbado ...

III
Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la. Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro porquinho e meia dúzia de galinhas. Mas o porco e as aves que cavassem a vida, porque Jeca não lhes dava o que comer. Por esse motivo o porquinho nunca engordava, e as galinhas punham poucos ovos. Jeca possuía ainda um cachorro, o Brinquinho, magro e sarnento, mas bom companheiro e leal amigo. Brinquinho vivia cheio de bernes no lombo e muito sofria com isso. Pois apesar dos ganidos do cachorro, Jeca não se lembrava de lhe tirar os bernes. Por que? Desânimo, preguiça... As pessoas que viam aquilo, franziam o nariz. - Que criatura imprestável! Não serve nem para tirar berne de cachorro...

IV
Jeca só queria beber pinga e espichar-se ao sol, no terreiro. Ali ficava horas, com o cachorrinho rente, cochilando. A vida que rodasse, o mato que crescesse na roça, a casa que caísse. Jeca não queria saber de nada. Trabalhar não era com ele. Perto morava um italiano já bastante arranjado, mas que ainda assim trabalhava o dia inteiro. Por que Jeca não fazia o mesmo? Quando lhe perguntavam isso, ele dizia: - Não paga a pena plantar. A formiga come tudo. - Mas como é que seu vizinho italiano não tem formiga no sítio? - É que ele mata. E por que você não faz o mesmo? Jeca coçava a cabeça, cuspia por entre os dentes e vinha sempre com a mesma história: - Quá! Não paga a pena ... - Além de preguiçoso, bêbado; e além de bêbado, idiota, era o que todos diziam.

V
Um dia um doutor portou lá por causa da chuva e espantou-se de tanta miséria. Vendo o caboclo tão amarelo e magro, resolveu examiná-lo. - Amigo Jeca, o que você tem é doença. - Pode ser. Sinto uma canseira sem fim, e dor de cabeça, e uma pontada aqui no peito, que responde na cacunda. - Isso mesmo. Você sofre de ancilostomíase. - Anci... o que? - Sofre de amarelão, entende? Uma doença que muitos confundem com a maleita. - Essa tal maleita não é sezão? - Isso mesmo. Maleita, sezão, febre palustre ou febre intermitente: tudo a mesma coisa. A sezão também produz anemia, moleza e esse desânimo do amarelão; mas é diferente. Conhece-se a maleita pelo arrepio ou calafrio que dá, pois é uma febre que vem sempre em horas certas e com muito suor. Quem sofre de sezão sara com o MALEITOSAN FONTOURA. Quem sofre de amarelão sara com a ANKILOSTOMINA FONTOURA. Eu vou curar você.

VI
O doutor receitou um vidro de ANKILOSTOMINA FONTOURA, para tomar assim: seis comprimidos hoje pela manhã e outros seis amanhã de manhã. - Faça isto duas vezes, com o espaço de uma semana. E de cada vez tome também um purgante de sal amargo, se duas horas depois de ter ingerido a ANKILOSTOMINA não tiver evacuado. E trate de comprar um par de botinas e alguns vidros de BIOTÔNICO e nunca mais me ande descalço e nem beba pinga, ouviu? - Ouvi, sim, senhor! - Pois é isso, rematou o doutor, tomando o chapéu. A chuva já passou e vou-me embora. Faça o que mandei, que ficará forte, rijo e rico como o italiano. Na semana que vem estarei aqui de volta. - Até por lá, sêo doutor! Jeca ficou cismando. Não acreditava muito nas palavras da Ciência, mas por fim resolveu comprar os remédios, e também um par de botinas ringideiras. Nos primeiros dias foi um horror. Ele andava pisando em ovos. Mas acostumou-se, afinal...

VII
Quando o doutor voltou, Jeca estava bem melhor, graças à ANKILOSTOMINA e ao BIOTÔNICO. O doutor mostrou-lhe com uma lente o que tinha saído das suas tripas: - Veja, sêo Jeca, que bicharia tremenda estava você a criar na barriga! São os tais ancilóstomos, uns bichinhos dos lugares úmidos, que entram pelos pés, vão varando pela carne adentro até alcançarem os intestinos. Chegando lá, grudam-se nas tripas e escangalham com o freguês. Tomando a ANKILOSTOMINA, você bota fora todos os ancilóstomos que tem no corpo. E andando sempre calçado, não deixa que entrem os que estão na terra. Fazendo isso e fortalecendo-se com alguns vidros de BIOTÔNICO, ovos e leite, você fica livre da doença para sempre. Jeca abriu a boca, maravilhado. - Os anjos digam amém, sêo doutor!

VIII
Mas Jeca não podia acreditar numa coisa: que os bichinhos entrassem pelo pé. Ele era "positivo" e dos tais que "só vendo". O doutor resolveu abrir-lhe os olhos: Levou-o a um lugar úmido, atrás de casa, e disse: - Tire a botina e ande um pouco por aí. Jeca obedeceu. - Agora venha cá. Sente-se. Bote o pé em cima do joelho. Assim. Agora examine a pele com essa lente. Jeca tomou a lente, olhou e percebeu vários vermes pequeninos que já estavam penetrando na sua pele, através dos poros. O pobre homem arregalou os olhos, assombrado. - E não é que é mesmo? Quem "haverá" de dizer!... - Pois é isso, sêo Jeca, e daqui por diante não duvide mais do que disser a Ciência. - Nunca mais! Daqui por diante dona Ciência está dizendo, Jeca está jurando em cima! T'esconjuro! E pinga, então, nem para remédio...

IX
Tudo o que o doutor disse aconteceu direitinho! Três meses depois ninguém mais conhecia o Jeca. A ANKILOSTOMINA curou-o do Amarelão. O BIOTÔNICO deixou-o bonito, corado, forte como um touro. A preguiça desapareceu. Quando ele agarrava no machado, as árvores tremiam de pavor. Era pã, pã, pã... horas seguidas, e os maiores paus não tinham remédio senão cair. E Jeca, cheio de coragem, botou abaixo o capoeirão, para fazer uma roça de três alqueires. E plantou eucaliptos nas terras que não se prestavam para cultura. E consertou todos os buracos da casa. E fez um chiqueiro para os porcos. E um galinheiro para as aves. O homem não parava, vivia a trabalhar com fúria que espantou até o seu vizinho italiano. - Descanse um pouco, homem! Assim você arrebenta... diziam os passantes. - Quero ganhar o tempo perdido, respondia ele, sem largar do machado. Quero tirar a prosa do "italiano".

X
Jeca, que era um medroso, virou valente. Não tinha mais medo de nada, nem de onça! Uma vez, ao entrar no mato, ouviu um miado estranho. - Onça! Exclamou ele. É onça e eu aqui sem uma faca!... Mas não perdeu a coragem. Esperou a onça, de pé firme. Quando a fera o atacou, ele ferrou-lhe tamanho murro na cara que a bicha rolou no chão, tonta. Jeca avançou de novo, agarrou-a pelo pescoço e estrangulou-a. - Conheceu, papuda? Você pensa que está lidando com algum pinguço opilado? Fique sabendo que tomei ANKILOSTOMINA e BIOTÔNICO e uso botina ringideira!... A companheira da onça, ao ouvir essas palavras, não quis saber de histórias - azulou! Dizem que até hoje está correndo...

XI
Ele, que antigamente, quando lenhava, só trazia três pausinhos, carregava agora cada feixe que metia medo. E carregava-os sorrindo, como se o enorme peso não passasse de brincadeira. - Amigo Jeca, você arrebenta! diziam-lhe. Onde se viu carregar tanto pau de uma vez? - Já não sou aquele de dantes! Isto para mim agora é canja... respondia o caboclo, sorrindo. Quando teve de aumentar a casa, foi a mesma coisa. Derrubou no mato grossas perobas, atorou-as, lavrou-as e trouxe no muque para o terreiro as toras todas. Sozinho! - Quero mostrar a essa paulama quanto vale um homem que tomou ANKILOSTOMINA e BIOTÔNICO, que usa botina cantadeira e que não bebe nem um só martelinho de cachaça! O italiano via aquilo e coçava a cabeça. - Se eu não tropicar direito, este diabo me passa na frente. Per Bacco!

XII
Dava gosto ver suas roças. Comprou arados e bois, e não plantava nada sem primeiro afofar a terra. O resultado foi que os milhos vinham lindos e o feijão era uma beleza. O italiano abria a boca, admirado, e confessava nunca ter visto roças assim. E Jeca já não plantava rocinhas, como antigamente. Só queria saber de roças grandes, cada vez maiores, que fizessem inveja no bairro. E se alguém lhe perguntava: - Mas para que tanta roça, homem? ele respondia: - É que agora quero ficar rico. Não me contento com trabalhar para viver. Quero cultivar todas as minhas terras, e depois formar aqui duas enormes fazendas - a Fazenda Ankilostomina e Fazenda Biotônico. E hei de ser até coronel... E ninguém duvidava mais. O italiano dizia: - E forma mesmo! E vira mesmo coronel! Per la Madonna!...

XIII
Por esse tempo, o doutor passou por lá e ficou admiradíssimo com a transformação de seu doente. Esperara que ele sarasse, mas não contara com tal mudança. Jeca o recebeu de braços abertos e apresentou-o à mulher e aos filhos. Os meninos cresciam viçosos, e viviam brincando, contentes como os passarinhos. E toda gente ali andava calçada. O caboclo ficara com tanta fé no calçado, que metera botinas até nos animais caseiros! Galinhas, patos, porcos, tudo de sapatinho nos pés! O galo, esse andava de bota e espora! - Isso também é demais, sêo Jeca, disse o doutor. Isso é contra a natureza! - Bem sei. Mas quero dar um exemplo a esta caipirada bronca. Eles vêm aqui, vêem isso e não se esquecem mais da história.

XIV
Em pouco tempo os resultados foram maravilhosos. A porcada aumentou de tal modo, que vinha gente de longe admirar aquilo. Jeca adquiriu um caminhão, e em vez de conduzir os porcos ao mercado pelo sistema antigo, levava-os de auto, num instantinho, buzinando pela estrada afora, fon-fon! Fon-fon! ... As estradas eram péssimas; mas ele consertou-as à sua custa. Jeca parecia um doido. Só pensava em melhoramentos, progressos, coisas americanas. Aprendeu logo a ler, encheu a casa de livros e por fim tomou um professor de inglês. - Quero falar a língua dos bifes para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa. O seu professor dizia: - O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig. Não diz galinha; é hen... Mas de álcool, nada. Antes quer ver o demônio, que um copinho da "branca"...

XV
Jeca só fumava charutos fabricados especialmente para ele, e só corria as roças montado em cavalos árabes de puro sangue. - Quem o viu e quem o vê! Nem parece o mesmo. Está um "estranja" legítimo, até na fala. Na "Fazenda Biotônico" havia de tudo. Campos de alfafa. Pomares belíssimos com quanta fruta há no mundo. Até criação do bicho-da-seda; Jeca formou um amoreiral que não tinha fim. - Quero que tudo aqui ande na seda, mas seda fabricada em casa. Até os sacos aqui da fazenda tem que ser de seda, para moer os invejosos... E ninguém duvidava de nada. - O homem é mágico, diziam os vizinhos. Quando assenta de fazer uma coisa, faz mesmo, nem que seja um despropósito...

XVI
A "Fazenda Biotônico" tornou-se famosa no país inteiro. Tudo ali era por meio do rádio e da eletricidade. Jeca, de dentro do seu escritório, tocava num botão e o cocho do chiqueiro se enchia automaticamente de rações muito bem dosadas. Tocava outro botão e um repuxo de milho atraía todo o galinhame!... Suas roças eram ligadas por telefones. Da cadeira de balanço na varanda, ele dava ordens aos feitores, lá longe. Chegou a mandar buscar nos Estados Unidos um aparelho de televisão. - Quero aqui desta varanda ver tudo o que se passa em minha fazenda. E tanto fez, que viu. Jeca instalou os aparelhos, e assim pôde, da sua varanda, com o charutão na boca, não só falar por meio do rádio para qualquer ponto da fazenda, como ainda ver, por meio da televisão, o que os camaradas estavam fazendo.

XVII
Ficou rico e estimado, como era natural; mas não parou aí. Resolveu ensinar o caminho da saúde aos caipiras das redondezas. Para isso montou na fazenda e vilas próximas vários POSTOS DE MALEITOSAN, onde tratava os enfermos de sezões; e também POSTOS DE ANKILOSTOMINA, onde curava os doentes de amarelão e outras verminoses. E quando algum empregado sentia alguma dor de cabeça, se estava resfriado, Jeca arrumava-lhe uns dois ou três comprimidos de Fontol, e imediatamente o homem estava bom, e pronto para o serviço. O seu entusiasmo era enorme. "Hei de empregar tôda minha fortuna nesta obra de saúde geral, dizia. Meu patriotismo é este. Minha divisa: Curar gente. Abaixo a bicharia! Viva o Biotônico! Viva ANKILOSTOMINA! Viva o Maleitosan! Viva o Fontol!" A estes vivas o coronel Jeca aumentou mais um. Foi quando apareceu o grande "liquida-insetos" chamado DETEFON e ele o experimentou na miuçalha da fazenda: pulgas, percevejos, piolhos, baratas, pernilongos e moscas. Deixou aquilo lá sem um só bichinho para remédio. Não contente com isso, Jeca tomou o hábito de nunca sair a cavalo ou de automóvel sem levar a tiracolo a bomba de pulverizar o DETEFON. Entrava nos casebres de beira de caminho e antes do "Bom dia!" punha-se fon, fon, fon, detefon, a pulverizar tudo, coisas e gentes. Quando acaba, dizia: - Ninguém faz a conta dos males que estes bichinhos causam à humanidade, como transmissores de moléstias... e dava mais umas bombadas de lambuja. E a curar gente da roça passou Jeca toda a sua vida. Quando morreu, aos 89 anos, não teve estátua ou grandes elogios nos jornais. Mas ninguém ainda morreu de consciência mais tranqüila. Havia cumprido o seu dever até o fim.

XVIII
Meninos: nunca se esqueçam desta história; e, quando crescerem, tratem de imitar o Jeca. Se forem fazendeiros, procurem curar os camaradas. Além de ser para eles um grande benefício, é para você um alto negócio. Você verá o trabalho dessa gente produzir três vezes mais. Uma país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale pelo trabalho que realiza e pela qualidade da sua gente. Ora, ter mais saúde é a grande qualidade de um povo. Tudo mais vem daí. E o grande remédio que combate o amarelão, esse mal terrível que tantos braços preciosos rouba ao trabalho, é a ANKILOSTOMINA. Assim como o grande conservador da saúde, que produz energia, força e vigor, chama-se BIOTÔNICO FONTOURA.

Fonte: http://www.lobato.globo.com/
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Para quem tiver curiosidade: a Rádio Record, em 1948, fez uma entrevista com Monteiro Lobato. São vários minutos de irreverência, nos quais o autor fala de petróleo e de literatura, de política e de estado de espírito. Vale a pena!

Entrevista:
parte 1 - http://www.youtube.com/watch?v=KD9LdEbvp1I
parte 2 - http://www.youtube.com/watch?v=yqJhKab_RJw
parte 3 - http://www.youtube.com/watch?v=JXkUdCdQrrU

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

"Queixa de Defunto", de Lima Barreto

No texto abaixo, o autor do início do século passado exprime uma de suas maiores marcas: a denúncia social. Por meio de uma fina ironia, bem ao estilo machadiano, a crítica mostra-se bastante atual, mesmo descolado o contexto no qual Barreto produziu sua crônica. Dica do nosso amigo Luis Fernando Kalife Jr.

*

Antônio da Conceição, natural desta cidade, residente que foi em vida, na Boca do Mato, no Méier, onde acaba de morrer, por meios que não posso tomar público, mandou-me a carta abaixo que é endereçada ao prefeito. Ei-la:

"Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Doutor Prefeito do Distrito Federal. Sou um pobre homem que em vida nunca deu trabalho às autoridades públicas nem a elas fez reclamação alguma. Nunca exerci ou pretendi exercer isso que sé chama os direitos sagrados de cidadão. Nasci, vivi e morri modestamente, julgando sempre que o meu único dever era ser lustrador de móveis e admitir que os outros os tivessem para eu lustrar e eu não.
Não fui republicano, não fui florianista, não fui custodista, não fui hermista, não me meti em greves, nem coisa alguma de reivindicações e revoltas, mas morri na santa paz do Senhor quase sem pecados e sem agonia.
Toda a minha vida de privações e necessidades era guiada pela esperança de gozar depois de minha morte no sossego, uma calma de vida que não sou capaz de descrever, mas que pressenti pelo pensamento, graças à doutrinação das seções católicas dos jornais.
Nunca fui ao espiritismo, nunca fui aos 'bíblias', nem a feiticeiros, e apesar de ter tido um filho que penou dez anos nas mãos dos médicos, nunca procurei macumbeiros nem médiuns.
Vivi uma vida santa e obedecendo às prédicas do Padre André do Santuário do Sagrado Coração de Maria, em Todos os Santos, conquanto as não entendesse bem por serem pronunciadas com toda a eloqüência em galego ou vasconço.

Segui-as, porém, com todo o rigor e humildade, e esperava gozar da mais dúlcida paz depois de minha morte. Morri afinal um dia destes. Não descrevo as cerimônias porque são muito conhecidas e os meus parentes e amigos deixaram-me sinceramente porque eu não deixava dinheiro algum. É bom meu caro Senhor Doutor Prefeito, viver na pobreza, mas muito melhor é morrer nela. Não se levam para a cova maldições dos parentes e amigos deserdados; só carregamos lamentações e bênçãos daqueles a quem não pagamos mais a casa.
Foi o que aconteceu comigo e estava certo de ir direitinho para o Céu, quando, por culpa do Senhor e da Repartição que o Senhor dirige, tive que ir para o inferno penar alguns anos ainda.
Embora a pena seja leve, eu me amolei, por não ter contribuído para ela de forma alguma. A culpa é da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro que não cumpre os seus deveres, calçando convenientemente as ruas.

Vamos ver por quê. Tendo sido enterrado no cemitério de Inhaúma e vindo o meu enterro do Méier, o coche e o acompanhamento tiveram que atravessar em toda a extensão a rua José Bonifácio, em Todos os Santos.
Esta rua foi calçada há perto de cinqüenta anos a macadame e nunca mais foi o seu calçamento substituído. Há caldeirões de todas as profundidades e largura, por ela afora. Dessa forma, um pobre defunto que vai dentro do caixão em cima de um coche que por ela rola, sofre o diabo. De uma feita um até, após um trambolhão do carro mortuário, saltou do esquife, vivinho da silva, tendo ressuscitado com o susto.
Comigo não aconteceu isso, mas o balanço violento do coche, machucou-me muito e cheguei diante de São Pedro cheio de arranhaduras pelo corpo. O bom do velho santo interpelou-me logo:
- Que diabo é isto? Você está todo machucado! Tinham-me dito que você era bem comportado - como é então que você arranjou isso? Brigou depois de morto?
Expliquei-lhe, mas não me quis atender e mandou que me fosse purificar um pouco no inferno.
Está aí como, meu caro Senhor Doutor Prefeito, ainda estou penando por sua culpa, embora tenha tido vida a mais santa possível. Sou, etc., etc."

Posso garantir a fidelidade da cópia e aguardar com paciência as providências da municipalidade.

Careta, 20-3-1920.