sexta-feira, 18 de julho de 2008

No Realismo, a arte imita a vida.

Na primeira postagem deste blog (que pode ser vista ainda, caso alguém esteja interessado), foi colocado um brilhante texto de Machado de Assis: "O Escravo Pancrácio", publicado originalmente numa coluna de crônicas do escritor. Pois bem, foi visto aqui também que a releitura do conto do mesmo autor, "Pai Contra Mãe", no filme "Quanto vale ou é por quilo?", de Sérgio Bianchi, torna mais evidente a ligação deste escritor com o seu tempo, visto que o episódio retratado no filme trata-se de um caso real documentado (um pequeno trecho dessa releitura, disponível no youtube, também consta entre as postagens abaixo). Então, para fins de comparação com o conto/crônica de Pancrácio, o escravo, segue abaixo um trecho elucidativo:

"A literatura imita a história no testemunho do fazendeiro Paula Sousa que comentava com seu colega baiano:
'Desde 1º de Janeiro não possuo um só escravo. Libertei todos e liguei-os a casa por um contrato igual ao que tinha com os colonos estrangeiros (...). Bem vês que meu escravismo é tolerante e suportável (...). Dei-lhes liberdade completa, incondicional, e no pequeno discurso que lhes fiz, falei-lhes dos graves deveres da liberdade lhes impunha e disse-lhes algumas palavras inspiradas no coração...No ponto de vista literário, fiz um fiasco completo por que chorei também'.
Essa carta, entre outras, somou-se a editorais e artigos publicados em abril e março de 1888 com o mesmo teor apresentando da concepção de liberdade reinante entre os senhores de escravos em pleno momento abolicionista."

CASTRO, Hebe M. Mattos de. "Laços de família e direitos no final da escravidão". In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.365-366.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

A Literatura como fonte histórica

Para quem ainda tem alguma dúvida do diálogo que a literatura proporciona com o seu tempo, a ANPUH (Associação Nacional dos Professores Universitários de História) promove seu encontro regional em Porto Alegre com o seguinte tema: "Vestígios do Passado - A História e Suas Fontes". Neste encontro, além da discussão acerca das fontes históricas tradicionais, haverá debates relacionando a literatura como elemento de pesquisa historiográfica. Abaixo, algumas dicas de Simpósios Temáticos, mesas e palestras legais.

O evento ocorre nesta semana, entre os dias 14 e 18, no Campus do Vale da UFRGS, nos locais e horários indicados.

15/07 - Terça-feira - Tarde (14h às 18h)MINI-AUDITÓRIO - PRÉDIO 43311 - 2º PISO
Os Intelectuais Brasileiros e as Interpretações do Brasil
- Marçal de Menezes Paredes - A intersecção portuguesa no regionalismo brasileiro: os casos do "gaúcho" e do "sertanejo";
- Danyllo Di Giorgio Martins da Mota - Da Maçaroca à Interpretação do Brasil: a relação de Monteiro Lobato com os jornais;
- Luciana Paiva Coronel - Literatura como fonte: a interpretação do Brasil contida na literatura de periferia dos anos 90

16/07 - Quarta-feira - Tarde (14h às 17h)MINI-AUDITÓRIO - PRÉDIO 43311 - 2º PISO
Os Intelectuais Brasileiros e as Interpretações do Brasil
- Éder Silveira - A polêmica Alencar-Nabuco e a crise da poética romântica

16/07 - Quarta-feira - Tarde (14h às 17h)SALA 204 - PRÉDIO 43324 - 2º PISO
Vestígios Impressos do Passado: objetivos e possibilidades de pesquisas com a fonte-jornal
- Cássia Daiane Macedo da Silveira As revistas literárias rio-grandenses do século XIX: o caso da Revista do Parthenon Litterario

17/07 - Quinta-feira - Tarde (14h às 18h)MINI-AUDITÓRIO - PRÉDIO 43311 - 2º PISO
Os Intelectuais Brasileiros e as Interpretações do Brasil
- Márcia Helena Saldanha Barbosa - Narrando os avessos: o Brasil na ficção de Guimarães Rosa e Dyonélio Machado;
- Christiane Marques Szesz - Os almanaques populares: leituras e apropriações em Ariano Suassuna

17/07 - Quinta-feira - Tarde (14h às 18h) SALA 209 - PRÉDIO 43324 - 2º PISO
Fronteiras Americanas: experiências e práticas de pesquisa
- Renata Dal Sasso Freitas - Paraísos Perdidos: uma análise dos romances "The Deerslayer" (1841) de James Fenimore Cooper e de "Iracema" (1865) de José de Alencar

17/07 - Quinta-feira - Tarde (14h às 18h) SALA 212 - PRÉDIO 43324 - 2º PISO
Intelectuais, Política e Imprensa: o pensamento autoritário no Brasil
Vanessa dos Santos Moura - A literatura gaúcha contesta o regime militar: uma análise interpretativa do romance "Os Tambores Silenciosos", de Josué Guimarães

18/07 - Sexta-feira - Tarde (14h às 16h)SALA 210 - PRÉDIO 43324 - 2º PISO
História e Fontes Religiosas: recortes, abordagens e formas de tratamento
- Marcelo Roberto da Silva Rios - A Utopia de Canudos

O olho de Camões

Luiz Vaz de Camões era caolho. As causas da perda do olho direito do poeta são muitas. Aquela mais citada diz respeito a um conflito militar no oriente.
No link abaixo, algumas outras hipóteses inusitadas que justificam o fato de como o poeta perdeu seu olho.

Para dar umas risadas!

CLIQUE AQUI!

QUANTO VALE OU É POR QUILO?

E aí, pessoal?!

Segue abaixo um link de vídeo no youtube para dar uma olhadinha. Trata-se de um pequeno trecho de "Quanto vale ou é por quilo", de Sérgio Bianchi, magnífico filme que explora as relações de poder que estabecem-se no Brasil contemporêneo através da problemática social e o avanço do terceiro setor (ONG'S e voluntariado).
Em jogos temporais muito bem articulados, o diretor traz referências documentais do passado do século XIX para ilustrar e comparar práticas sociais comuns da nossa sociedade, como nas relações entre senhor/escravo e patrão/empregado. Num dos momentos mais interessantes do filme, Biachi relê o clássico conto "Pai Contra Mãe", de Machado de Assis nos tempos atuais. Aqui, Cândido Neves vira Candinho, personagens que lidam com as mesmas angústias. É apenas um pequeno trecho, mas vale uma olhada - agora resta passar numa locadora e levar o filme para uma análise mais atenta.

CLIQUE AQUI PARA VER O TRECHO DO FILME!

quinta-feira, 10 de julho de 2008

"Passagem do Ano"

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez, estás vivo,
e de copo na mão esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
Carlos Drummond de Andrade ( livro: A Rosa do Povo)

segunda-feira, 7 de julho de 2008

"Escravo Pancrácio" - crônica escrita por Machado de Assis, publicada no jornal Gazeta de Notícias, em 19 de maio de 1888 (livro "Bons Dias")


Bons dias!
Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário fôr, que tôda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.
Neste jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.
No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado.
Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça, e pediu à ilustre assembléia que correspondesse ao ato que acabava de publicar, brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo; fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.
No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
- Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...
- Oh! meu senhô! fico.
- ...Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho dêste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...
- Artura não qué dizê nada, não, senhô...
- Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
- Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Êle continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe bêsta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas tôdas que êle recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a tôda a gente que dêle teve notícia; que êsse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposições) é então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.
Boas noites.

(Texto extraído do livro: Assis, Machado de. Obra Completa, Vol III. 3ª edição. José Aguilar, Rio de Janeiro. 1973. p. 489 - 491)